Encontro
singular
Irmão
X
–
Escute, moço...
Se é verdade que
o senhor escreve
para a Terra,
conte o meu
caso, amparando
alguém...
A
observação
procedia de um
rapaz
desencarnado, em
deplorável
situação num
vale de
suicidas.
O
seu corpo, que
se adensava,
pesado e escuro,
se retorcia,
qual se
estivesse fixado
em agitação
permanente, e,
na garganta, se
lhe viam
arroxeadas
feridas,
alentadas
decerto pelos
pensamentos de
angústia a lhe
percutirem,
constantes, na
forma
atormentada.
Percebi-lhe a
condição de
enforcado e
diligenciei
colocá-lo à
vontade:
–
Fale meu irmão,
quero ouvi-lo e
aprender.
E
o jovem,
desenfaixado do
envoltório
físico,
desmanchou-se em
agoniadas
recordações:
–
Sabe?... Fui no
mundo uma vítima
do copo... Tudo
começou numa
festa...
Lembro-me... Um
convite
inocente...
Brincadeira...
Um colega
abeirou-se de
mim com um
frasco de bebida
licorosa... Em
seguida, a
intimação amiga:
um trago, só um
trago...
Recusei... Não
tinha hábito...
Em derredor de
nós a roda
alegre e
expectante...
“Então, você –
zombeteou o
companheiro
sarcástico -,
então você é dos
tais... Um
maricas...
Filhinho da
mamãe... Que faz
você com as
calças?...”
Ignorava que
aceitar um
desafio desses
era perigoso
para mim... Os
outros bebiam e
gargalhavam...
Acabei
aderindo...
Engoli uma
talagada, outra
e mais outra...
Depois, a cabeça
zonza e o prazer
esfuziante... No
dia seguinte, a
necessidade do
aperitivo... E,
dos aperitivos,
passei à
bebedeira
inveterada...
Alfaiate bem
pago, a breve
trecho comecei a
deteriorar-me em
serviço...
Erros, faltas,
pileques,
ressacas...
Terminadas as
tarefas
cotidianas,
trocava o lar
pelo bar... E
sempre o quadro
lastimável,
noite a noite...
Amigos me
apoiando até a
casa e, na
porta, a cansada
mãezinha a
esperar-me...
Constantemente,
a mesma voz
doce, insistindo
e abençoando...
“Meu filho, não
beba! Não beba
mais!...” Minha
reação negativa
nunca falhava...
Esbravejava,
ameaçava,
premindo-lhe os
braços
trêmulos... Na
manhã imediata,
os remorsos e as
promessas de
corrigenda e
reajuste... Em
sobrevindo a
noite, porém,
novas
carraspanas e
disparates... Em
várias ocasiões,
ao despertar,
surpreendia
pratos e copos
quebrados e a
informação
estranha de que
fora eu o
culpado...
Estivera em
pavoroso
delírio,
perpetrando
desatinos e
violências...
Aborrecia-me,
arrependia-me...
No entanto, a
sede de álcool
sempre mais
forte... As
ocorrências
infelizes se
sobrepunham umas
às outras, até
que, um dia,
acordei no
cárcere... Oh!
Por quê? Por que
a prisão?
Horrorizou-me a
resposta do
guarda... “Você
é um
assassino”...
Eu? Um
assassino?... E
ele: “Sim, você,
seu bêbado, você
matou”...
Solucei,
esmagado de
sofrimento... O
peito parecia
rebentar-me e
gritei: “Meu
Deus, meu Deus,
que será de
minha mãe?!...”
Aí, veio a
revelação
terrível: “foi
ela própria que
você
destruiu... sua
mãe, sua
vítima”... Não
acreditei...
Pedi provas...
Levado à
residência sob a
custódia de
alguns soldados,
ainda pude vê-la
cadaverizada na
urna... Mostrava
na garganta os
sinais de
estrangulamento...
Em torno de nós,
as
testemunhas...
Os que me haviam
visto de perto
com os dedos
cravados na
carne materna,
em momento de
insânia...
Ajoelhei e
gritei
debalde...
Recolhido à
cadeia,
positivamente
dementado,
aguardei a noite
alta e,
aproveitando
algumas tiras de
cobertor,
enforquei-me...
Desde então, sou
um farrapo que
vive, uma chaga
que pensa... Se
minha história
triste pode
servir a
benefício de
alguém, fale
dela aos outros,
aos que se acham
no caminho
terrestre, na
bica da
invigilância ou
do desespero...
Anotei, ali
mesmo, o
episódio
amargoso que
alinhavo nesta
crônica e deixo
o relato, com as
próprias
palavras do
desventurado
protagonista, em
nossa
apresentação do
assunto, para
estudo e
reflexão dos
amigos
reencarnados que
porventura nos
leiam.
Entretanto,
recordando o meu
próprio
ceticismo no
tempo em que
estadeava o
enxundioso(1)
uniforme carnal,
entre os homens
do plano físico,
não estou muito
certo de que
alguém possa
realmente
acreditar em
nós.
(1)
Enxundioso:
cheio de
enxúndia;
gorduroso,
untuoso; muito
gordo; obeso.
Do livro
Estante da Vida,
obra mediúnica
psicografada
pelo médium
Francisco
Cândido Xavier.