CLÁUDIO BUENO DA SILVA
Klardec1857@yahoo.com.br
Osasco, SP
(Brasil)
|
|
Ideias espíritas em
Guimarães Rosa
A revista “Época” e o
jornal “A Folha
de S. Paulo”, de
circulação nacional, e
várias associações
internacionais elegeram
o livro “Grande Sertão:
Veredas”, de João
Guimarães Rosa, como uma
das cem maiores obras da
literatura universal do
século 20.
Considerado romance
genial, o livro já foi
estudado dentro e fora
do Brasil. A habilidade
estilística desse autor,
de rara formação
linguística e
filosófica, é
reconhecida
internacionalmente.
“Grande Sertão: Veredas”
narra a história do
cangaço nos sertões que
incluíam as vastas
regiões de Minas, Bahia,
Goiás, com suas venturas
e desventuras, justiças
e injustiças, crenças e
superstições, num
período característico
da história daquela
região brasileira.
Lugares ermos
praticamente sem lei e
sob domínio da força,
palco de conflitos
cruentos entre as
milícias do governo e os
cangaceiros.
A leitura dessa obra
surpreende, não só pelo
tratamento dado às
palavras, com seus sons
e ritmos peculiares,
como pela construção
poética das frases que
permeiam todo o romance.
A sabedoria popular, os
ditos, motes do
sertanejo rude acabam
dando encantamento às
falas que parecem compor
um outro idioma.
O AMOR QUE TRANSFORMA
A surpresa não fica por
aí. Num texto tão longo
e denso, o leitor,
atento às ideias, vai
encontrando aqui e ali,
conceitos muito, mas
muito próximos do
Espiritismo. A
linguagem, para quem não
está habituado a ler
Guimarães Rosa, é
estranha, complicada. É
preciso ler sem pressa,
para ir saboreando o seu
conteúdo e compreendendo
o texto.
Comentarei a seguir
alguns pequenos trechos
da obra, como este, onde
vemos expresso o
conceito de amor ao
próximo: Tudo é e não
é... Quase todo mais
grave criminoso feroz
sempre é muito bom
marido, bom filho, bom
pai, e é bom
amigo-de-seus-amigos!
Sei desses. Só que tem
os depois – e Deus,
junto. Ou seja, como
afirma Fénelon no
capítulo XI de “O
Evangelho segundo o
Espiritismo”, há sempre
algo bom (centelha do
amor em germe), até no
pior dos seres. As ações
más, em meio às boas,
terão no futuro o juízo
da consciência, no
acerto de contas de cada
um consigo mesmo, sob a
justiça de Deus.
E este outro, onde a
ideia de depuração e
aperfeiçoamento do ser
está evidente: Que o
que gasta, vai
gastando o diabo de
dentro da gente, aos
pouquinhos, é
o razoável sofrer. E
a alegria do amor
– compadre meu Quelemén
diz – Família. Se
mudarmos a ordem das
frases, teremos o
pensamento claramente
interpretado: é o
sofrimento justo e
aceito (“razoável
sofrer”) e a alegria do
amor em família que
“gastam”, eliminam aos
pouquinhos, as
imperfeições de dentro
da gente.
A certa altura da
narrativa fala-se de um
homem chamado Aleixo,
frio protagonista de
muitas maldades. Um dia,
sem motivo, o tal mata
um velhinho pedinte por
puro prazer. Esse Aleixo
tem família, quatro
filhos pequenos. Um ano
após, os filhos todos
adoecem de sarampo
“brabo”, que lhes atinge
os olhos. Quando saram,
todos ficam cegos. O
narrador encerra a
história triste do
Aleixo, desta forma:
O Aleixo não perdeu o
juízo; mas mudou: ah,
demudou completo – agora
vive da banda de Deus,
suando para ser bom e
caridoso em todas suas
horas da noite e do dia.
Parece até que ficou o
feliz, que antes não
era. Ele mesmo diz que
foi um homem de sorte,
porque Deus quis ter
pena dele, transformar
para lá o rumo de sua
alma. O que se vê
aqui, no personagem
Aleixo, senão a
resignação, a
compreensão da dor, do
revés, trazendo
transformação moral?
PROGRESSO E
REENCARNAÇÃO
Em relação à história
anterior, a Lei do
Progresso não estará
também aqui?: Que,
por certo, noutra vida
revirada, os meninos
também tinham sido os
mais malvados... E,
na sequência, poderemos
considerar a associação
entre dois eventos de
encarnações distintas,
neste trecho: E o
velhinho assassinado? –
eu sei que o senhor vai
discutir. Pois também.
Em ordem que ele tinha
um pecado de crime, no
corpo, por pagar.
Entenda-se aqui, um
crime cometido em vida
física anterior que
acaba sendo vivenciado
em papéis invertidos,
para despertar o
indivíduo que continua
com a mesma imperfeição
da outra vida. É a
pedagogia da vida maior.
O narrador do romance
não é o autor
propriamente, mas um
personagem chamado
Riobaldo que, dentre
inúmeros casos, cita um
em que marido e mulher,
primos carnais, tiveram
quatro filhos, todos
eles disformes: sem
braços e pernas. Sobre
esse caso, argumenta:
Arre, nem posso figurar
minha ideia
nisso!... um outro
doutor, doutor rapaz...
discorreu me dizendo que
a vida da gente encarna
e reencarna, por
progresso próprio, mas
que Deus não há.
Estremeço. Como não
haver Deus?! Com Deus
existindo, tudo dá
esperança: sempre um
milagre é possível, o
mundo se resolve. Mas,
se não tem Deus, há-de a
gente perdidos no
vaivém, e a vida é
burra. É o aberto perigo
das grandes e pequenas
horas, não se podendo
facilitar – é todos
contra os acasos. Há
aqui abordagem
interessante: a
encarnação e
reencarnação promovem o
progresso individual,
mas “sem Deus”, portanto
pela força do acaso. Já
Riobaldo argumenta (como
os espíritas
argumentariam) que, sem
Deus a humanidade não
tem rumo, direção, e a
vida não tem sentido,
lógica nem sabedoria.
Não se tem proteção,
vivendo-se em constante
sobressalto. Sem Deus, a
humanidade teria que
lutar incessantemente
contra a força cega do
destino.
Continuando a exposição
dos seus “motivos
filosóficos” sobre Deus,
a vida, a dor, o céu, o
inferno, numa belíssima
página, o personagem
Riobaldo arremata:
Mas, se não tem Deus,
então, a gente não tem
licença de coisa
nenhuma! Porque existe
dor. E a vida do homem
está presa encantoada –
erra rumo, dá em
aleijões como esses, dos
meninos sem pernas e
braços. Dor não dói até
em criancinhas e bichos,
e nos doidos – não dói
sem precisar de se ter
razão nem conhecimento?
E as pessoas não nascem
sempre? Ah, medo tenho
não é de ver morte, mas
de ver nascimento. Medo
mistério. É curiosa
a afirmação do medo, não
da morte, mas do
nascimento com seus
mistérios e incertezas
quanto à dor, ao
sofrimento que
fatalmente aparecerão
durante a vida. E
realmente, encontramos
em várias obras
espíritas, depoimentos
de Espíritos prontos
para reencarnar,
demonstrando insegurança
e receio quanto às lutas
e provas que deverão
enfrentar.
O SENTIDO DO VIVER
A dualidade Bem x Mal é
apontada no texto: O
que não é Deus, é estado
do demônio. E o
objetivo da vida, bem
como a ideia de sua
continuidade depois da
morte, parece claro
nesta passagem: Mas a
gente quer Céu é porque
quer um fim: mas um fim
com depois dele a gente
tudo vendo. Que
maneira genial de dizer
que o homem quer atingir
um objetivo com a vida,
que é o Céu (a virtude,
a felicidade)! Mas um
“fim” onde tudo
continue, onde a vida
prossiga, com a gente
vendo, participando,
vivendo!
O certo é que há
surpresas agradáveis
nesse romance de
Guimarães Rosa,
principalmente para os
espíritas atentos.
Até Allan Kardec é
citado pelo jagunço
Riobaldo, quando este
fala do seu “gosto”
pelas religiões e cita
seu compadre e
conselheiro Quelemén, a
quem respeita muito:
O que mais penso, testo
e explico: todo-o-mundo
é louco. O senhor, eu,
nós, as pessoas todas.
Por isso é que se carece
principalmente de
religião: para se
desendoidecer, desdoidar.
Reza é que sara da
loucura. No geral. Isso
é que é a
salvação-da-alma...
Muita religião, seu
moço! Eu cá, não perco
ocasião de religião.
Aproveito de todas. Bebo
água de todo rio... Uma
só, para mim é pouca,
talvez não me chegue.
Rezo cristão, católico,
embrenho a certo; e
aceito as preces de
compadre meu Quelemén,
doutrina dele, de
Cardéque.
Há muito mais que se
dizer dessa obra
grandiosa, no que se
refere à espiritualidade
nela entranhada. Mas
concluiremos com um
trecho em que Riobaldo,
um sertanejo sem letras,
discursa sobre a vida
humana. Para ele, a
vida é complexa, com
seus momentos de alegria
e tristeza, de regalo e
necessidade, de
tranquilidade e
apreensões. Ela dá e
tira, conforme a
circunstância e exige
empenho, luta e
disposição. Compreender
a vida significa saber o
que Deus quer de nós: a
capacidade de aceitar a
alegria e a dor, os bons
e maus momentos como
aprendizado. Esse é o
trecho: O correr da
vida embrulha tudo, a
vida é assim: esquenta e
esfria, aperta e daí
afrouxa, sossega e
depois desinquieta. O
que ela quer da gente é
coragem. O que Deus quer
é ver a gente aprendendo
a ser capaz de ficar
alegre a mais, no meio
da alegria, e inda mais
alegre ainda no meio da
tristeza!
Leia mais em: Grande
Sertão: Veredas,
João Guimarães Rosa,
romance, Nova Fronteira,
2006.