JANE MARTINS
VILELA
jane.m.v.imortal@gmail.com
Cambé, PR
(Brasil)
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Vitoriosa centenária
“As minhas ovelhas ouvem
a minha voz...” (Jesus)
“Quando eu tinha sete
anos, morava em
Uberabinha, era muito
difícil médico lá,
costumávamos procurar
curandeiros ou
benzedeiros quando havia
doenças. Fui levar meu
irmão mais novo que
estava doente, para
minha mãe, que eu
ajudava a cuidar, pois
era a mais velha. Lá
chegando, percebi que
ele me olhava
intensamente. Ele me
disse: – Minha filha,
você precisa fazer muita
caridade, senão vai
acabar numa cadeira de
rodas. Eu não sabia o
que era uma cadeira de
rodas. Cheguei a casa,
contei para a minha mãe
e perguntei o que era
uma cadeira de rodas.
Ela sabia menos ainda.
Estou aqui, andando até
hoje com minhas próprias
pernas, não fiquei
paralítica e o
curandeiro é meu amigo,
de vez em quando vem
aqui em espírito me
visitar.”
Esse foi o início de um
relato de uma senhora
muito especial.
Recebeu-nos em sua casa,
em Cambé. Caminhava com
ajuda de um andador,
cega, um sorriso
luminoso em sua face,
uma simpatia enorme,
muito carinhosa e
lúcida. Mora numa
chácara com a família.
No dia 8 de maio de 2015
completará cem anos. Já
convidou o Espírito de
nosso querido Hugo
Gonçalves, que também
chegou aos cem anos,
para estar com ela na
comemoração de seus cem
anos. Fala com
naturalidade das visitas
que recebe do Espírito
de Jerônimo Mendonça, um
dos grandes espíritas
brasileiros, admirado e
lembrado até hoje – “O
Gigante Deitado”,
conforme ainda é
nomeado. Essa senhora
responde pelo nome de
Deolinda Abranches. Quem
passa pela estrada,
entre Rolândia e Cambé,
não imagina que naquela
chácara vive uma
espírita de grande
valor, uma das
fundadoras do Centro
Espírita Obreiros da
Vida Eterna, de Santo
André, São Paulo, há,
segundo seus cálculos,
uns sessenta anos. “Eu
tinha quarenta anos”,
disse-me ela. Mudou-se
para Cambé há cerca de
quinze anos, mas ainda
se comunica toda a
semana com as amigas do
“Obreiros da Vida
Eterna”. Sua vida é de
amor ao próximo,
trabalho e muito
sacrifício para ajudar
sua família, quando mais
jovem. Nós nos ateremos
aos seus relatos sobre o
Espiritismo.
Aos quatorze anos de
idade, morando na cidade
de São Paulo, foi a um
mercado, na época
chamado de “venda”, para
a sua mãe. Lá chegando,
uma frase destacada na
parede chamou sua
atenção: “Tratai o
corpo. Tratai a alma”.
Aquilo a atraiu como um
ímã. Tratar a alma? Como
tratar a alma? Perguntou
isso ao dono da “venda”.
“Menina”, disse ele,
olhando-a. (Ela, com
tranças no cabelo,
sandálias nos pés,
vestido simples de
chita, lembrava uma
menininha.) “Você é
muito nova para querer
saber essas coisas”,
disse ele. “Mas eu quero
saber”, insistiu ela.
“Como tratar a alma?”
Ele a levou para a
esposa, que lhe disse
que ela era muito nova,
mas que sentia que ela
precisava saber. Levou-a
ao salão de reuniões.
Venha quarta às 20
horas, dia de nossa
reunião, você verá como
se trata a alma. Ela
chegou a casa, contou à
mãe. “Lá vem você de
novo”, disse ela. Com
sete anos queria saber
da maçonaria, subia nas
caixas e olhava lá
dentro onde eram as
reuniões e voltava
contando para a mãe o
que tinha visto no
local. Agora isso? A mãe
a colocou para lavar a
louça toda para se
atrasar para a reunião,
mas ela conseguiu chegar
a tempo.
O dono da venda
aguardava por ela, para
fechar a porta. Era uma
reunião mediúnica, todos
sentados, concentrados
ao redor da mesa. A
esposa do vendeiro
gentilmente a levou para
sentar-se à mesa.
“Concentre-se minha
filha”, disse ela. Ela
fechou os olhos. Pôs as
mãos no rosto como via
os outros, mas, curiosa,
olhava por entre os
dedos, para ver o que
aconteceria. A esposa do
vendeiro, com paciência,
aproximou-se e lhe
disse: “Você não quer
ver como se trata a
alma? Então, feche os
olhos, concentre-se que
verá”, disse ela.
Deolinda o fez. Pouco
depois se iniciaram as
comunicações mediúnicas
e ela ficou encantada.
Emprestaram-lhe O
Evangelho segundo o
Espiritismo e ela se
encantou mais ainda.
“Mamãe, dizia ela, eu
sei tudo o que está
aqui!”
Em 1929, a mãe a fez
devolver o livro, com
ameaça de queimá-lo, e
proibiu que ela
frequentasse a reunião.
Dois anos depois, em
1931, com dezesseis
anos, começou a namorar
e o namorado, para
agradá-la, comprou-lhe o
livro que ela lhe pediu:
O Evangelho segundo o
Espiritismo.
Aos quarenta anos de
idade ela e um grupo de
mulheres se juntaram em
trabalhos nobres, numa
área perto de uma grande
favela em Santo André,
onde morava então. A
partir disso e de seus
esforços, surgiu o
centro espírita
“Obreiros da Vida
Eterna”. Suas histórias
dessa época dariam
muitas páginas neste
jornal, então nos
limitamos a alguns
fatos.
Deolinda Abranches fez
palestras até os 85 anos
de idade. O trabalho que
mais a encantava, no
entanto, era na área de
evangelização infantil
com as crianças da
favela. Disse ela que os
evangelizadores dos
outros centros, há
muitos anos atrás, nos
encontros de
evangelizadores do
estado de São Paulo, lhe
perguntavam como ela
conseguia. Suas crianças
iam limpas e cheirosas,
não usavam mais
estilingues, não usavam
mais canivetes, não
brigavam mais. “Com
amor”, ela dizia. Mas
dava a receita da
“limpeza”. Fez campanha,
comprou sabonetes,
dentifrícios, escovas de
dente, vasilhames e
entregou para os seus 36
alunos, ensinando-lhes
como tomar banho e
escovar os dentes. Só
tinha uma torneira para
a favela inteira, então,
tinham que ficar em
fila, não brigar e
encher o vasilhame de
água, levar para casa e
tomar banho. “Quem não
vier limpinho, cheiroso,
não ganha bolo”, dizia
ela. Como todos queriam
bolo, todos iam limpos.
Seus olhos marejaram de
emoção ao se recordar de
um dia das mães. Ela
ensinou as meninas a
fazerem bicos de crochê
nos panos de prato e os
meninos, trancinhas.
Embrulhou carinhosamente
os presentes para
levarem para as mães.
Quando iam se retirando,
uma das meninas, a mais
pobre, órfã de pai, lhe
levou uma linda flor de
presente. Ela havia
economizado durante
meses cada moedinha que
ganhava, juntou tudo
para lhe comprar a flor,
como presente do dia das
mães.
Deolinda conheceu
Jerônimo Mendonça quando
ele fez palestras em
Santo André. Fez
campanha para o Lar
Espírita Pouso do
Amanhecer, que ele
fundou, em Ituiutaba,
Minas Gerais. Conseguiu
lençóis para as crianças
e brinquedos também. Não
é de estranhar,
portanto, que hoje o
Espírito dele a visite
fraternalmente.
Quando ouvimos sua
história, pensamos como
Deus é infinitamente bom
e misericordioso.
Permite que o amor se
difunda através de seus
filhos mais
esclarecidos. Hoje, aos
99 anos, ela sorri e
diz: – Não fiquei
paralítica, sempre agi
com a caridade nos atos.
Uma receita para a
lucidez nessa idade:
amor e trabalho no bem.
Hugo Gonçalves foi assim
também. Lúcido aos cem
anos.
Feliz época aquela em
que aos sete anos (em
1922) alguém podia falar
o que falou ao Espírito
daquela criança, o
curandeiro, sem ser
injuriado ou condenado
por isso. Despertado, o
Espírito, aos 14 anos,
quis entender como
tratar a alma e, aos 16,
recebeu o Evangelho de
presente. Uma vida de
poucos, a vida toda
servindo ao bem, com
amor, e agora, próxima
dos cem anos de idade,
anônima em Cambé.
Que nós, espíritas, nos
espelhemos sempre em
Jesus, nosso modelo e
guia, mas aproveitemos
essas vidas que são
exemplo de amor ao
próximo, para que, por
nossa vez, façamos a
parte que nos é pedida
de amor, fraternidade e
tolerância. Que possamos
ter, na velhice, boas
recordações, como a dona
Deolinda.