ANGÉLICA DOS
SANTOS SIMONE
angelssimone@gmail.com
São Paulo, SP
(Brasil)
|
|
Seríamos nós os
curadores?
É comum, na casa
espírita, o
corpo de
trabalhadores
ser composto por
pessoas que se
voluntariaram na
premissa de
auxiliar a
alguém
(necessitado).
Quando a casa
possui a
oportunidade de
desenvolver
algum trabalho
com as crianças,
conseguimos
perceber, mais
nitidamente,
como que as
situações se
estruturam.
A criança
encerra a
espontaneidade.
Ela é o que é,
nitidamente um
reflexo de seu
entorno, hoje em
dia, mais do que
a expressão de
sua
individualidade.
Para tanto, se a
nossa sociedade
quisesse
procurar os
pontos a serem
corrigidos para
contínua
evolução,
deveria observar
as crianças.
Enquanto
trabalhadores
voluntários, em
realidade, nos
encontramos como
estagiários em
constante
aprendizado
sobre como lidar
com as dores do
outro. Digo em
estágio porque
não possuímos
capacidade de
compreender o
universo
individual sem o
lápis dos juízos
de valor que
fazemos, ainda
utilizando o
Evangelho e os
ensinamentos da
doutrina como
plataforma de
julgamento.
Mesmo assim, a
providência nos
possibilita
sublime
aprendizado.
Destacamos aqui
a história de um
de nossos
pequeninos
personagens.
Com seus sete
anos
incompletos, a
inquietação e a
violência
predominam nas
formas de se
expressar. A
família
fragmentada pelo
desamparo dos
progenitores,
que por sua vez
perdem-se em
devaneios e
culpabilidades
sem-fim para
justificar os
erros, as
inconsequências
e o abandono de
seus filhos.
A filha mais
velha vaga sem
rumo no caminho
da prostituição.
Ainda que
tentassem, os
trabalhadores do
passado, a
orientação
devida para ela,
descobrimos que
a família é, em
primeira,
segunda e
terceira
instâncias, o
tronco de
sustentação de
qualquer ser em
qualquer idade.
O filho do meio,
entre idas e
vindas dos
centros
“socioeducativos”,
hoje continua a
caminhar pelos
espinhos do
desalento e da
insensatez,
abandona-se a si
mesmo, pois já
não se enxerga
como um feixe
divino. Aliás,
nunca ninguém o
disse isso,
muito pelo
contrário.
O segundo menino
mais novo
possui, dentre
um conjunto de
problemas
familiares,
deficiência
intelectual e
problemas
neurológicos, os
quais marcaram a
esteira de sua
jornada entre
cirurgias e
convulsões. Tão
novo, mas, ao
contrário de
todos os seus
familiares, o
único a
expressar doçura
e complacência.
O mais novo,
nosso aluno, os
seus olhos já
não expressam o
brilho da
infância curiosa
e intensa. As
dores o apagaram
até que elas se
tornaram a única
realidade
possível. O
pequenino ser
penetrou em um
campo psíquico
quase que
alucinatório
para sua idade,
onde se acredita
que possua algum
tipo de
deficiência
intelectual que
justifica o seu
estado de
perturbação e
agitação, o
qual, à mira de
médiuns de
visão, não passa
de um frágil
joguete nas mãos
de Espíritos da
mais baixa
evolução, que o
sacodem de um
lado para o
outro.
Para concluirmos
o quadro, a
progenitora,
tendo sido
deixada pelo
companheiro,
sustenta a
humilde casa com
o trabalho de
catadora de
material
reciclável.
Todos os dias
ela enfrenta as
provas mais
duras. Tão duras
que parece que
alcançaram o seu
espírito, a sua
essência,
transformando-a
numa expressão
da revolta pura
e desmesurada.
Os limites já
não mais existem
e ela está
pronta para
qualquer
enfrentamento,
mesmo que a
situação seja de
uma oportunidade
de aprendizado
na civilidade.
Não, aqui não
vemos mais ação.
Apenas reação. E
não a reação com
base em
situações e
emoções reais. É
uma reação
cadenciada, com
base nas
frustrações e
desencontros de
outros momentos,
de outros dias,
o que faz com
que os momentos
que o pequeno
passa sob nossos
cuidados sejam
altamente
estressantes,
pois ele não
encontra base
equilibrada para
se sustentar.
Seu Espírito já
depende da
condição de
conflito para
perceber a sua
própria
existência.
Quando em nossa
casa, causa os
maiores
transtornos,
atingindo a
todos, de
maneira que
tenta como que
afogando-se em
alto mar
inspirar as
últimas
partículas de ar
para, logo em
seguida,
afogar-se já que
não consegue
voar.
Observo este
menino com o
qual trabalhei
ano passado. O
combinado é para
que os pais
cheguem às 12h
(quando as
crianças já
almoçaram) para
irem buscá-los.
São 13h e nosso
personagem se
perde no ralo do
esgoto na parte
externa da casa.
Não bastava
quebrar a tampa,
tenta alcançar
outras proezas.
Quando chamado
pelo nome,
guarda um
segundo para
lembrar que é a
ele que chamam.
Prefere ficar
sozinho e não
ser tocado, ao
que reage de
forma violenta.
Quebrou o vidro
da porta com a
mão, e a mãe
observou sem
preocupação.
Ainda assim
retorna sempre,
talvez para
experimentar
algumas horas de
“calmaria” em
sua semana
truncada pelas
contradições, e
para a mãe
“descansar”.
Nós,
voluntários,
observamos,
pensamos,
questionamos,
classificamos,
enquadramos,
justificamos,
tecemos
comentários e
teorias,
julgamos
pareceres e
apontamos
caminhos, como
se a criança
fosse uma
situação de
impacto
ambiental em
determinada
área, o que
tivesse que ser
prontamente
resolvido para
que a natureza
não se voltasse
contra nós.
Pessoas não se
resolvem, ainda
mais crianças.
A condição é
difícil e
envolve, desde
inclinações do
próprio
Espírito, até as
movimentações do
sistema
econômico
mundial.
Diminuímos as
suas dores? Não.
Compreende a
importância de
Deus em sua
vida? Não.
Ele se entende
como filho de
Deus, divino e
eterno? Não,
pois são nossas
palavras contra
o seu cotidiano.
Assimila o amor?
Em absoluto.
De que adianta,
então, este
trabalho para a
sua vida?
Ele não sabe, e
talvez demore
muito para
saber, mas entre
os voluntários
que participam
desta
experiência,
aqueles que
percebem
encontram-se em
oportunidade
única de se
regenerarem, de
olharem para seu
ego e colocá-lo
em seu lugar de
preencher a
malícia com a
bondade, a
ignorância com a
luz, o falso
patamar de
superioridade
com a humildade,
a cega sapiência
com a
consciência do
infinito.
Ele não sabe,
mas está ali
para nos ensinar
e para nos
curar, pois nada
podemos fazer,
não só para ele
como para
ninguém. O
trabalho
voluntário da
casa espírita é
um momento de
partilhamento
das dores, das
dúvidas, dos
avanços, dos
erros, dos
acertos. Não é
um local onde
uns ensinam, uns
ajudam e outros
aprendem. Sob o
amor de Jesus,
congregamos em
comunidade onde
todos, sem
exceção,
apresentam-se
como caminhantes
em que o todo é
um manancial de
vida para as
partes.