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Crônicas e Artigos

Ano 9 - N° 413 - 10 de Maio de 2015

ANGÉLICA DOS SANTOS SIMONE
angelssimone@gmail.com
São Paulo, SP (Brasil)

 


Seríamos nós os curadores?


É comum, na casa espírita, o corpo de trabalhadores ser composto por pessoas que se voluntariaram na premissa de auxiliar a alguém (necessitado).

Quando a casa possui a oportunidade de desenvolver algum trabalho com as crianças, conseguimos perceber, mais nitidamente, como que as situações se estruturam.

A criança encerra a espontaneidade. Ela é o que é, nitidamente um reflexo de seu entorno, hoje em dia, mais do que a expressão de sua individualidade. Para tanto, se a nossa sociedade quisesse procurar os pontos a serem corrigidos para contínua evolução, deveria observar as crianças.

Enquanto trabalhadores voluntários, em realidade, nos encontramos como estagiários em constante aprendizado sobre como lidar com as dores do outro. Digo em estágio porque não possuímos capacidade de compreender o universo individual sem o lápis dos juízos de valor que fazemos, ainda utilizando o Evangelho e os ensinamentos da doutrina como plataforma de julgamento.

Mesmo assim, a providência nos possibilita sublime aprendizado.

Destacamos aqui a história de um de nossos pequeninos personagens.

Com seus sete anos incompletos, a inquietação e a violência predominam nas formas de se expressar. A família fragmentada pelo desamparo dos progenitores, que por sua vez perdem-se em devaneios e culpabilidades sem-fim para justificar os erros, as inconsequências e o abandono de seus filhos.

A filha mais velha vaga sem rumo no caminho da prostituição. Ainda que tentassem, os trabalhadores do passado, a orientação devida para ela, descobrimos que a família é, em primeira, segunda e terceira instâncias, o tronco de sustentação de qualquer ser em qualquer idade. O filho do meio, entre idas e vindas dos centros “socioeducativos”, hoje continua a caminhar pelos espinhos do desalento e da insensatez, abandona-se a si mesmo, pois já não se enxerga como um feixe divino. Aliás, nunca ninguém o disse isso, muito pelo contrário.

O segundo menino mais novo possui, dentre um conjunto de problemas familiares, deficiência intelectual e problemas neurológicos, os quais marcaram a esteira de sua jornada entre cirurgias e convulsões. Tão novo, mas, ao contrário de todos os seus familiares, o único a expressar doçura e complacência.

O mais novo, nosso aluno, os seus olhos já não expressam o brilho da infância curiosa e intensa. As dores o apagaram até que elas se tornaram a única realidade possível. O pequenino ser penetrou em um campo psíquico quase que alucinatório para sua idade, onde se acredita que possua algum tipo de deficiência intelectual que justifica o seu estado de perturbação e agitação, o qual, à mira de médiuns de visão, não passa de um frágil joguete nas mãos de Espíritos da mais baixa evolução, que o sacodem de um lado para o outro.

Para concluirmos o quadro, a progenitora, tendo sido deixada pelo companheiro, sustenta a humilde casa com o trabalho de catadora de material reciclável. Todos os dias ela enfrenta as provas mais duras. Tão duras que parece que alcançaram o seu espírito, a sua essência, transformando-a numa expressão da revolta pura e desmesurada. Os limites já não mais existem e ela está pronta para qualquer enfrentamento, mesmo que a situação seja de uma oportunidade de aprendizado na civilidade.

Não, aqui não vemos mais ação. Apenas reação. E não a reação com base em situações e emoções reais. É uma reação cadenciada, com base nas frustrações e desencontros de outros momentos, de outros dias, o que faz com que os momentos que o pequeno passa sob nossos cuidados sejam altamente estressantes, pois ele não encontra base equilibrada para se sustentar. Seu Espírito já depende da condição de conflito para perceber a sua própria existência. Quando em nossa casa, causa os maiores transtornos, atingindo a todos, de maneira que tenta como que afogando-se em alto mar inspirar as últimas partículas de ar para, logo em seguida, afogar-se já que não consegue voar.

Observo este menino com o qual trabalhei ano passado. O combinado é para que os pais cheguem às 12h (quando as crianças já almoçaram) para irem buscá-los. São 13h e nosso personagem se perde no ralo do esgoto na parte externa da casa. Não bastava quebrar a tampa, tenta alcançar outras proezas.

Quando chamado pelo nome, guarda um segundo para lembrar que é a ele que chamam. Prefere ficar sozinho e não ser tocado, ao que reage de forma violenta. Quebrou o vidro da porta com a mão, e a mãe observou sem preocupação.

Ainda assim retorna sempre, talvez para experimentar algumas horas de “calmaria” em sua semana truncada pelas contradições, e para a mãe “descansar”.

Nós, voluntários, observamos, pensamos, questionamos, classificamos, enquadramos, justificamos, tecemos comentários e teorias, julgamos pareceres e apontamos caminhos, como se a criança fosse uma situação de impacto ambiental em determinada área, o que tivesse que ser prontamente resolvido para que a natureza não se voltasse contra nós.

Pessoas não se resolvem, ainda mais crianças.

A condição é difícil e envolve, desde inclinações do próprio Espírito, até as movimentações do sistema econômico mundial.

Diminuímos as suas dores? Não.

Compreende a importância de Deus em sua vida? Não.

Ele se entende como filho de Deus, divino e eterno? Não, pois são nossas palavras contra o seu cotidiano.

Assimila o amor? Em absoluto.

De que adianta, então, este trabalho para a sua vida?

Ele não sabe, e talvez demore muito para saber, mas entre os voluntários que participam desta experiência, aqueles que percebem encontram-se em oportunidade única de se regenerarem, de olharem para seu ego e colocá-lo em seu lugar de preencher a malícia com a bondade, a ignorância com a luz, o falso patamar de superioridade com a humildade, a cega sapiência com a consciência do infinito.

Ele não sabe, mas está ali para nos ensinar e para nos curar, pois nada podemos fazer, não só para ele como para ninguém. O trabalho voluntário da casa espírita é um momento de partilhamento das dores, das dúvidas, dos avanços, dos erros, dos acertos. Não é um local onde uns ensinam, uns ajudam e outros aprendem. Sob o amor de Jesus, congregamos em comunidade onde todos, sem exceção, apresentam-se como caminhantes em que o todo é um manancial de vida para as partes.


 

 


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O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita