EUGÊNIA PICKINA
eugeniapickina@gmail.com
Indaiatuba, SP
(Brasil)
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Liturgia da
natureza
Gosto de passear
pelo parque, nas
manhãs de
domingos, quando
o tempo está
bonito, sol de
primavera, e as
flores enchendo
o ar.
Nenhum ruído
digital perturba
a natureza, e de
quando em quando
se veem crianças
alegres e um
azul celeste
vestindo sem
pudor o céu.
Penso que a vida
poderia ser
assim, um largo
jardim, o canto
das aves dando o
tom da vigília;
depois, sem
pressa, o
suspiro das
folhas no
entardecer, que
termina na
escuridão das
árvores,
convidando o
sono para o
corpo e os
sonhos que
decifram enigmas
sobre o nosso
mundo.
Houve tempo em
que os parques e
as praças, mesmo
nas grandes
cidades, eram,
ao menos, mais
amados, pois,
sem dúvida,
aquilo que (mal)
fazemos ao
espaço coletivo,
como o péssimo
hábito de jogar
lixo no chão ou
nas águas dos
lagos, denuncia
a rude atitude
(feia) de nossas
almas…
Mas o gestual
mais perverso
justamente
aparece, e cada
vez mais, onde
deveria ser
evitado: no meio
da casa privada
das árvores, a
qual na cidade
chamamos “espaço
público”. Onde
estão flora e
fauna? E quem de
nós ousaria
maldizer aquilo
que a natureza
levou memórias
de anos para
conceber e de
forma tão
bonita?
Por isso me
assusta a
verticalização
abusiva em
muitas cidades
do País, o
excesso de
condomínios
murados, os
edifícios todos
iguais,
construídos
segundo a
tirania da
economia de
mercado, que
cada vez mais dá
lugar à
cidade empresa,
feita para
consumidores ou
desatentos com
as leis maiores
que organizam a
Vida.
A utilidade da
cidade
empresa faz
agonizar a
pólis, a
possibilidade de
uma urbanidade
como espaço do
encontro entre
cidadãos. Já se
define então no
País, e isso tão
nítido, com
pressa e barulho
nos últimos
anos, um
(dissimulado)
adeus ao ideal
de philia
nas cidades.
E pensei no
último domingo,
quando corria no
parque, que a
elegância das
árvores deveria
ser meditada por
aqueles que
passaram a
ignorar valores
estéticos
e valores
fraternos, e
que são
indeclináveis
conviventes.
Sim, em geral,
estética e
fraternidade
avisam que as
cifras da
economia com
pouca frequência
ativam memórias
relacionadas à
melodia dos
passarinhos,
lagos
cristalinos,
bichos
invisíveis, mas
que sabemos que
estão ali,
habitando
bosques e
parques, fazendo
parte da rede
misteriosa que
torna a Terra
nossa casa,
nosso destino
comum, ainda que
os existentes
grudados às
coisas duvidem…
No final, somos
cúmplices,
querendo ou não,
naquilo de
misterioso e
belo, mas também
feio e grotesco,
que definem o
nosso
tempo-espaço
como um ambiente
de horror e
egoísmo, além
das escassas
esperanças.
Pouco sei, porém
insisto: são os
espaços privados
das árvores que
nos ajudam viver
nossos corpos
para conduzir
nossos sonhos. E
apenas cuidando
deles poderemos
evitar o
pandemônio
que na cidade
grita a vida em
fuga, agonizada
pelo sintoma da
insônia e
o escuro da
depressão –
cujo cinzento
peso pode
provocar
profundidade
à [árida] vida
do indivíduo.
Desconfio,
portanto, que
parte de um “existir
com sentido”
é recriado
diariamente no
silêncio dos
espaços
públicos, quando
perdemos tempo
com flores e
pássaros, e,
durante a noite,
quando aceitamos
tecer nossos
sonhos, que nos
acendem para o
amanhecer na
cidade.
Então,
confiantes,
revitalizados na
liturgia da
natureza,
fluir com nossas
incertas
jornadas,
contudo
implicadas com a
atitude
cotidiana de
quem sabe
reverenciar o
outro ao seu
redor. Afinal,
que motivos
alegar contra o
prazer de
aquietar os
pensamentos sob
a sombra de uma
robusta árvore
durante o sol do
meio-dia?