MARCELO TEIXEIRA
maltemtx@uol.com.br
Petrópolis, RJ (Brasil)
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Ser do mundo, estar no
mundo, fugir do mundo
Era o ano de 2002 quando
o filme brasileiro
Cidade de Deus chegou
aos cinemas. A história,
adaptada pelo diretor
Fernando Meirelles, do
livro homônimo de Paulo
Lins narra o cotidiano
barra-pesada de uma
comunidade carente da
Zona Oeste da cidade do
Rio de Janeiro.
Violento, impactante e
real a toda prova,
Cidade de Deus tornou-se
o filme brasileiro de
maior projeção desde
então. Recebeu,
inclusive, quatro
indicações ao Oscar.
O cinema brasileiro já
vinha mostrando sinais
de retomada há um bom
tempo. Dois bons
exemplos são O Quatrilho
e Central do Brasil, que
levou a atriz Fernanda
Montenegro a ganhar o
Urso de Prata no
Festival de Berlim e a
concorrer ao Oscar de
melhor atriz.
A partir de Cidade de
Deus, nosso cinema
tornou-se um produto
mais crível, tanto aqui
como no exterior.
Produções como
Carandiru; Tropa de
Elite I e II; O Cheiro
do Ralo; Cinema,
Aspirinas e Urubus e
Estômago foram aclamados
pela crítica e
alcançaram boas
bilheterias.
Por que estou dizendo
isso tudo? Porque, certa
vez, preparando uma
palestra espírita sobre
O Bem e o Mal, resolvi
citar uma cena de Cidade
de Deus. Quando assisti
ao filme, considerei
essa cena a mais
violenta; um dileto
exemplo do que é, de
fato, o mal. Tempos
depois, participando de
um seminário com
teóricos das áreas de
comunicação e
literatura, vi que não
estava sozinho. Era
opinião geral que o
momento mais violento de
Cidade de Deus (e olha
que o filme é repleto de
cenas de execução,
tiroteio e espancamento)
era a cena que eu
escolhi e que descrevo a
seguir.
Buscapé, o protagonista
do filme, é um garoto
que não se deixa levar
pela vida marginal e vai
trabalhar de contínuo
num jornal de grande
circulação. Como tem o
hábito de fotografar,
certo dia tira fotos dos
jovens criminosos da
Cidade de Deus e as
mostra, inocentemente,
para o pessoal do
jornal. No dia seguinte,
à revelia de Buscapé, as
fotos aparecem na
primeira página. Ele,
muito nervoso, conversa
com os jornalistas, pois
tem medo que os bandidos
possam expulsá-lo da
comunidade ou até
matá-lo. Os jornalistas,
então, enrolam Buscapé.
Quando ele sai de cena,
o repórter e o
diagramador do jornal se
olham, se entreolham e
sorriem maliciosamente.
Esta é a cena mais
violenta. Não há
tiroteio, estupro,
palavrões, consumo de
drogas... Apenas um
garoto com pouca
instrução sendo
ludibriado pela turma
culta e bem articulada
da imprensa.
Retornando à palestra,
quando fui dar tal cena
como exemplo, perguntei
antes quem da plateia
havia assistido à Cidade
de Deus para corroborar
o exemplo que eu daria.
Para minha surpresa,
ninguém ergueu o braço.
Confesso que fiquei
decepcionado. Havia
cerca de 80 pessoas no
salão; adultos na casa
dos 30 e 40 anos, a
maioria. Todos de classe
média. Por que não
haviam assistido ao
filme? Por que é
violento? Gostam somente
de filmes? Preferem
filme de cunho
espiritualista? É filme
brasileiro, portanto,
pornográfico, como
muitos ainda pensam?
Terá sido por todos
esses motivos?
Anos antes, assisti ao
seminário Espiritismo e
Ecologia, proferido pelo
jornalista André
Trigueiro. Para ilustrar
o tema, ele perguntou se
alguém da plateia sabia
quem havia ganhado o
Prêmio Nobel da Paz no
ano anterior. Havia sido
a ambientalista queniana
Wangari Maathai. Ninguém
sabia. Mais adiante,
perguntou se alguém
sabia qual havia sido o
tema da Campanha da
Fraternidade da Igreja
Católica. Resposta:
Água, fonte de vida. Mas
ninguém sabia também.
Ele, então, ressaltou
que o Espiritismo é uma
doutrina moderna, sempre
a par dos avanços da
ciência e sempre dando
respostas racionais e
consoladoras aos
conflitos do homem
contemporâneo. Por essa
razão, os espíritas não
podiam ficar de fora da
discussão ambiental. A
Igreja, pelo tema da
referida campanha, já se
mostrava engajada.
Faço minhas as palavras
do André Trigueiro e
estendo-as à questão
cultural. Será que
Cidade de Deus, Tropa de
Elite e os demais não
devem ser vistos pelos
espíritas por serem
violentos? Em que mundo
estamos? Num mundo onde
ainda prevalece o mal.
Deveremos, por isso,
passar ao largo da
violência que assola
classes menos
favorecidas e vem sendo
brilhantemente retratada
e denunciada pelo cinema
brasileiro? Penso que
não.
É corrente, no movimento
espírita, dizer que
“devemos estar no mundo
sem sermos do mundo”. Eu
mesmo já disse isso
várias vezes em
palestras. Mas o que de
fato essa sentença quer
dizer?
A realidade violenta
retratada por boa parte
da atual safra da
produção cinematográfica
nacional é chocante de
ser vista. É uma
realidade resultante de
um misto de corrupção,
descaso e injustiça
social para a qual não
podemos fechar os olhos.
Pregamos o amor ao
próximo e o perdão às
ofensas? Sim. Devemos
perseverar no bem? Sim.
Mas isso não quer dizer
que devemos ficar
alheios a essa atual
vertente da produção
cinematográfica. Ela
retrata e denuncia
questões que muitos
compatriotas vivem e que
precisam ser superadas.
Entender como funciona
esse mundo cão pode nos
dar subsídios para que o
estudemos e até
contribuamos para ajudar
na busca de soluções,
por mais difíceis e
utópicas pareçam. Isso é
estar no mundo sem ser
do mundo. Seríamos do
mundo se fôssemos
coniventes ou
diretamente ligados a
tudo de errado que
fomenta a indústria da
violência.
Julgo preocupante o fato
de muitos companheiros
de movimento espírita
não se arriscarem a
assistir a tais filmes a
pretexto de que são
tristes e horrorosos,
como já ouvi. Triste e
horrorosa é a realidade
que eles mostram, e de
forma brilhante, lúcida,
criticamente
construtiva. Nessa
realidade, há pessoas de
bem que são espezinhadas
por bandidos, milicianos
e políticos corruptos;
há policiais que suam a
camisa, ganham pouco e
não se deixam corromper;
e há autoridades que
arriscam a vida na luta
contra um sistema
corrompido. Gente,
enfim, que merece nosso
apoio, nossas preces,
nosso incentivo.
Às vezes tenho a
impressão de que muita
gente pensa que, pelo
fato de a verdadeira
vida ser a espiritual,
não devemos nos ater aos
fatos do mundo, já que
estamos aqui de
passagem. Sermos
indiferentes à questão
da violência e da boa
safra da produção
nacional dos últimos
tempos é nos
comportarmos de forma
alienada. É fugirmos do
mundo, algo totalmente
diferente de ser do
mundo. É nos julgarmos
superiores e crermos que
não temos nada a ver com
as mazelas do Brasil
atual por estarmos nos
preparando para o lado
de lá.
Estar no mundo:
reencarnamos na Terra
para progredir,
desenvolver
potencialidades,
transformarmos desafetos
em afetos, resolvermos
pendências de vidas
passadas e contribuirmos
para um mundo mais
justo. Além disso,
participarmos das
discussões que visam a
melhorar o País, cerrar
fileiras contra o
banditismo e a
corrupção, sermos
cidadãos mais
participativos.
Ser do mundo: pactuarmos
com o mal; sermos
omissos; acovardarmo-nos
diante de injustiças;
irmos de roldão junto
com a turba que xinga,
bate, corrompe, fala o
que não deve...
Fugir do mundo: não nos
posicionarmos
politicamente; não nos
engajarmos na causa
ecológica (Atenção,
espírita: precisamos
reciclar o lixo, evitar
o desperdício de água;
abolir o uso de sacolas
plásticas na hora das
compras...); não ir ao
cinema, teatro,
restaurantes; ficar
alheio ao que muita
gente interessante tem a
dizer em livros,
jornais... E, o mais
preocupante, a meu ver:
só sair de casa para ir
ao centro espírita; só
ler livros espíritas; só
ir ao cinema para ver
filmes espíritas. Agindo
desse jeito, podemos nos
tornar pessoas maçantes
que só têm um assunto:
Espiritismo, que, por
mais fascinante e
consolador que seja, não
deve interessar a todas
as pessoas com quem
convivemos. Ou será que
só convivemos com o
pessoal do centro
espírita?
É claro que temos o
direito de assistir aos
filmes que quisermos.
Mas é triste ver pessoas
do movimento espírita
(adultos jovens, ainda
por cima) ignorarem um
filme como Cidade de
Deus sob o pretexto de
que é violento. Claro
que é. Mas não é uma
violência gratuita.
Muito pelo contrário.
Temos a ver, mesmo que
indiretamente, com o que
Fernando Meirelles
mostra na tela.
Quando adotamos uma
postura, digamos,
isolacionista, corremos
o risco de perder o
senso crítico, ou seja,
achar que só o que é
espírita é bom. Não é,
sinto muito. Dos
recentes filmes
espíritas, gostei de
Nosso Lar e de Chico
Xavier – O Filme. Mas
confesso que não gostei
de outros títulos. Não
vou achá-los lindos só
porque são espíritas.
Louvo a atitude, acho
importante que a
Doutrina Espírita esteja
cada vez mais presente
nos cinemas. Não
devemos, no entanto,
perder de vista o senso
crítico. A não ser que
queiramos fugir do mundo
em vez de estar no
mundo.
Isso me lembra de um
episódio vivido por mim
e outros amigos da época
da mocidade espírita, em
meados da década de
1980. Estávamos numa
cachoeira de Petrópolis
num dia de verão. Um dos
integrantes da mocidade
havia levado um colega
espírita de outro
Estado. Lá pelas tantas,
chega um grupo de
pessoas e se acomoda um
num ponto mais adiante
de nós. Sem problema.
Afinal, estávamos em
local público. Nadávamos
e conversávamos em paz
quando esse rapaz
espírita vira-se para
nós e diz que era melhor
irmos embora, pois ele
havia visto entidades
sofredoras junto com o
grupo que chegara há
pouco. Argumentamos que
ficaríamos onde
estávamos, nos
divertindo de forma
saudável.
Faço votos para que esse
rapaz, a quem nunca mais
vi, tenha amadurecido e
educado sua mediunidade.
Se começarmos a evitar
determinados lugares por
causa das entidades
sofredoras que
provavelmente lá se
encontram, nunca mais
iremos à praia, ao
supermercado e aos já
citados cinemas,
teatros, restaurantes...
Precisamos do mundo, e
ele de nós. Vivamos as
oportunidades culturais
que o mundo oferece, mas
sabendo separar o joio
do trigo, como ensinou o
Cristo. Isso é estar no
mundo.
Tenhamos, portanto,
cuidado para não nos
isolarmos do mundo como
se nada em volta além do
Espiritismo nos
interessasse. Não é isso
que a Doutrina Espírita
prega; não é isso que
ela espera de nós.