Devotamento:
dedicação
ao bem
do outro
No
quarteto
de
virtudes
elementares
formadoras
da
Caridade,
assim
elencadas
por
Allan
Kardec,
o
devotamento
é a
última.
Não se
trata,
entretanto,
de uma
menor
importância
atribuída
a ela,
visto
que a
Caridade
é o
resultado
da
interação
sistêmica
entre as
quatro,
todas
apresentando
igual
valor,
porém
cada uma
exercendo
funções
diferentes
no
conjunto.
Vivemos
numa era
em que
as
sociedades
estão
dominadas
pelo
materialismo.
Em vista
dessa
cultura,
as
virtudes
morais
são
pouco
estimuladas
e menos
vivenciadas
ainda.
Quando
algo não
é
valorizado
pela
sociedade,
seus
termos
definidores
são
pouco
falados,
saem de
moda,
não são
usados
cotidianamente,
e por
isso os
seus
significados
acabam
sendo
esquecidos.
Nesta
situação,
tais
termos
perdem o
seu
poder de
orientação
da vida,
porque
as
pessoas
não os
compreendem
mais.
Desse
modo,
falar em
devotamento
em uma
sociedade
em que
as
pessoas
buscam
em
primeiríssimo
lugar as
suas
vantagens
pessoais
é
expressar
algo que
não será
percebido
e,
portanto,
não será
compreendido
e não
produzirá
efeito
nenhum.
Portanto,
se
acreditamos
realmente
que o
Espiritismo
tem uma
missão a
cumprir
na
transformação
do
mundo, é
nossa
obrigação
fazer
reviver
os
significados
originais
destes
termos.
A
palavra
devotamento
tem
origem
no latim
devotere,
que
significa
prestar
voto,
consagrar.
Pode
tanto
significar
dedicar
algo em
sacrifício
a
alguém,
sobretudo
aos
mortos,
a
potências
superiores,
como
também
se
denomina
toda e
qualquer
prestação
de
serviço,
quando
há boa
vontade
e certo
desinteresse,
ou
apenas
por
benevolência.
É,
portanto,
uma
manifestação
virtuosa.
Implica,
igualmente,
a
capacidade
de
sacrifício
pessoal,
inclusive
da
própria
vida em
benefício
de outro
ou
outros,
vindo a
confundir-se
com a
abnegação[1].
Mas a
simples
apresentação
de
sinônimos
não nos
diz
muito:
dedicação
a que,
ou a
quem?
Como
estamos
nos
referindo
a uma
virtude
moral, a
primeira
resposta
que nos
vem à
mente é
dedicação
ao bem
do
outro.
Porém, é
possível
que
alguém
possa
fingir
essa
dedicação,
decorrendo
daí que
poderiam
existir
falsos e
verdadeiros
devotamentos.
Façamos
uma
primeira
diferenciação.
Devotamento
verdadeiro
é aquele
praticado
com o
máximo
desinteresse
pessoal,
isto é,
o bem
que se
deseja é
o do
outro,
portanto,
nele não
pode
haver
qualquer
dissimulação,
porque “[...]
não há
devotamento
sem
desinteresse;
[...][2]”.
Embora
não se
restrinja
à
dedicação,
ela é o
centro
do
conceito
de
devotamento.
Kardec
nos
traz, na
Revista
Espírita,
inúmeros
exemplos
de
devotamento
e
definições
que se
revelavam
entre um
tema e
outro,
mostrando
o que
pensava
e como o
conceituava.
Uma das
passagens
que
marca a
importância
desta
virtude
é esta:
“[...]
não
há
verdadeira
caridade
sem
devotamento,
[...][3]”.
Vinda da
lavra do
próprio
coautor
da
Doutrina
Espírita,
temos
aqui a
confirmação
de que o
devotamento
é
virtude
elementar
da
Caridade.
Um dos
exemplos
indicadores
de como
era
entendido
devotamento
está
neste
relato:
“O
doutor
Cogswell
é
bibliotecário
chefe da
Astor
Library.
O
devotamento
que leva
no
remate
de um
catálogo
completo
da
biblioteca,
frequentemente,
fá-lo
tomar,
para o
seu
trabalho,
as horas
que
deveria
consagrar
ao sono,
[...][4]”.
(Grifos
nossos.)
A
dedicação
do
bibliotecário
em
questão
fá-lo
usar até
o seu
tempo de
descanso
para que
o seu
trabalho
seja
executado
com
perfeição.
Outra
característica
do
devotamento
é a
continuidade;
não
existe
devotamento
sem
dedicação,
e nem
esta sem
continuidade:
“[...]
um
sublime
impulso
não é
mais o
devotamento
do que
uma
inspiração
isolada
não é o
gênio”[5].
Assim
como um
gênio
não se
caracteriza
por ter
sido
criativo
uma vez
ou
outra,
mas sim
por ter
demonstrado
uma
constância
de
insights
criativos,
o
devotamento
é mais
do que
um
comportamento,
é uma
conduta.
Além da
constância,
um
conjunto
de atos
bons
para ser
caracterizado
como
Caridade
deve ser
universal,
ou seja,
não pode
ser
intencionalmente
limitado
a um
grupo,
família,
partido
político,
classe
social,
nação,
raça,
nem deve
selecionar
quem
receberá
os
benefícios
usando,
por
exemplo,
critérios
como a
condição
social,
pois “O
devotamento
é cego:
socorre-se
um
inimigo,
deve-se,
pois,
socorrer
mesmo o
inimigo
da
sociedade,
um
malfeitor,
em uma
palavra”[6].
A
dedicação
intencionalmente
exclusiva
não é
devotamento.
Podemos
identificar
aqui a
dimensão
do
cuidar
do
outro;
cuidar
das
pessoas
para
promover
o seu
bem, e
bem-estar.
Kardec
esteve
sempre
preocupado
com a
contextualização
das
virtudes
para
evitar o
anacronismo,
tão
comuns
em
pessoas
com
certa
incapacidade
de
flexibilizar
o
pensamento.
Por isso
o vemos
dizendo
que
“[...]
o
devotamento
consiste
em tomar
o bastão
de
viajor
para ir
pregar,
em nome
do
mundo,
ao
primeiro
que
chegue?
Não,
certamente;
em
qualquer
lugar em
que se
esteja,
pode-se
ser
útil.
O
verdadeiro
devotamento
consiste
em saber
tirar a
melhor
parte de
sua
posição,
colocando
a
serviço
da
causa, o
mais
utilmente
possível
e com
discernimento,
as
forças
físicas
e morais
que
a
Providência
distribuiu
a todos”[7]
(grifos
nossos).
Ora,
pelo que
está
dito
percebe-se
que o
devotamento
não é, e
não pode
ser um
comportamento
irrefletido.
Como
todas as
outras
virtudes,
há a
necessidade
de
observar
o
contexto,
avaliar
as
próprias
forças e
fraquezas,
e os
recursos
dos
quais
dispõe,
tanto os
físicos
quanto
os
morais,
para a
sua
melhor
utilização,
de
maneira
que
possa
produzir
o maior
bem
possível.
A
própria
posição
social
do
individuo,
a sua
situação
profissional,
o
conjunto
de
relações
sociais
que
mantém é
recurso
que pode
ser
utilizado
para
esta
finalidade.
Quem
está
interessado
em
realmente
fazer o
bem
sempre
procura
no lugar
em que
esteja e
nas
condições
em que
se
encontra
alguma
possibilidade
de o
produzir.
Todavia,
na
atualidade,
um dos
maiores
obstáculos
ao
devotamento
é a
busca
desenfreada
do
bem-estar,
que
quando
mal
regulado
gera o
comodismo.
Quando
se trata
de
promover
o bem, o
devotado
não teme
enfrentar
trabalhos
pesados,
serviços
desagradáveis
ou
tarefas
malcheirosas,
sobretudo
aquelas
que os
preconceitos
sociais
colocam
como
devendo
ser
executada
por
pessoas
de
condição
econômica
desprivilegiada.
O
devotado
usa até
do seu
tempo de
descanso
para ser
útil aos
outros[8],
mas
sempre
com o
mais
puro
desinteresse
pessoal.
O
bem-estar
exagerado,
fruto do
hipermaterialismo
contemporâneo,
desarticula
as
forças
morais
dos
homens e
mulheres
a ponto
de
esfriarem
os seus
sentimentos
mais
nobres.
E onde a
indiferença
toma
conta o
devotamento
desaparece.
Há certa
semelhança,
uma área
de
identidade,
entre o
devotamento
e aquilo
a que
atualmente
chamamos
“motivação”,
a qual é
o
processo
responsável
pela
intensidade,
direção
e
persistência
dos
esforços
de uma
pessoa
para
alcançar
determinado
objetivo,
o que a
faz
despender
esforços
para
atingi-lo.
Intensidade
refere-se
a quanto
esforço
a pessoa
despende.
É o
elemento
ao qual
a
maioria
de nós
se
refere
quando
fala em
motivação.
Ora,
vimos
que sem
esforços,
sem
vencer o
comodismo
não se
consegue
ser
devotado.
Contudo,
somente
a alta
intensidade
dos
esforços
não é
capaz de
levar a
resultados
favoráveis
de
desempenho,
a menos
que
canalizados
em uma
direção
predeterminada.
No
devotamento
esta
direção
é o bem
de
outrem.
Portanto,
precisamos
considerar
a
qualidade
do
esforço,
tanto
quanto
sua
intensidade.
O tipo
de
esforço
que
devemos
buscar é
aquele
que vai
em
direção
aos
objetivos
traçados
e que é
coerente
com
estes
objetivos.
Por fim,
a
motivação
tem uma
dimensão
de
persistência.
Essa é
uma
medida
de
quanto
tempo
uma
pessoa
consegue
manter
seu
esforço,
ou seja,
a
continuidade
de que
nos fala
Kardec.
Os
indivíduos
motivados
mantêm-se
na
realização
da
tarefa
até que
seus
objetivos
sejam
atingidos;
os
devotados
realizam
contínuos
esforços
para
promover
o bem de
outrem.
Observemos
que o
“esforço”
é
central
no
conceito
de
motivação,
e no
devotamento
o de
“dedicação”,
mas esta
implica
realizar
esforços
para
promover
o bem
alheio.
Assim,
ambos os
conceitos
têm a
questão
do
“esforço”
ou
“sacrifício”
como
pontos
centrais.
O que
distingue
mais
claramente
devotamento
e
motivação
é que
aquele é
desinteressado
e
desapegado,
enquanto
esta
pode ser
aplicada
para
objetivos
que
visem ao
atendimento
de
interesses
pessoais.
Podemos
resumir
todo o
exposto
na
seguinte
definição:
devotamento
é o
esforço
desinteressado
e
contínuo
realizado,
com
aplicação
útil das
forças e
recursos
físicos
e morais
de que
dispõe e
nas
condições
em que
se
encontra,
após
analise
e
reflexão
do
contexto,
visando
promover
o bem de
outrem.
[1] Mário Ferreira dos Santos, Mário. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais. p. 548. Realmente, tanto Kardec, quanto os Espíritos utilizam várias vezes o termo devotamento como sinônimo de abnegação. Porém, em varias ocasiões deixam claro que não há identidade total entre estas duas virtudes. Cremos que Kardec não colocaria duas virtudes, que de certa forma se assemelham, como elementares. Decerto, ambas são distintas, porém mantêm certas relações, as quais serão melhor estudadas em outra oportunidade.
[2] Allan Kardec. Revista Espírita. Estado do Espiritismo em 1863. Médiuns Curadores. 1864. Janeiro. p. 10.
[3] Allan Kardec. Revista Espírita. Estado do Espiritismo em 1863. Médiuns Curadores. 1864. Janeiro. p. 10.
[4] Allan Kardec. Revista Espírita. Variedades. A biblioteca de New York. 1860. Maio. p. 140.
[5] Allan Kardec. Revista Espírita. Sobre os Instintos. 1862. Fevereiro. p. 56.
[6] Allan Kardec. Revista Espírita. Ensinamentos e Dissertações Espíritas. A caridade para com os criminosos. 1862. Março. p. 83.
[7] Allan Kardec. Revista Espírita. O Espiritismo em Toda Parte. 1869. Março. p. 49.
[8] Allan Kardec. Revista Espírita. Os Médicos Médiuns. 1867. Outubro. p. 210.