Quatrocentos e
noventa vezes!
Uma história
sobre o perdão
Até mesmo na
cruz Ele
proferiu o poema
do perdão
Jurandir é um
professor de
matemática,
muito estudioso
e dedicado à
ciência do
cálculo e das
equações. Jovem
ainda, ele busca
sempre sentido
lógico e
racional em tudo
que observa. Um
copo nunca é só
um copo, mas sim
um conjunto de
formas obtidas
da relação
intrincada de
cálculos
geométricos. A
física também
lhe presta
grande auxílio
para buscar o
entendimento de
tudo o que
acontece à sua
volta.
Mas nem sempre
lhe é possível
concluir de
forma lógica. Há
algo que o
intriga muito: o
ser humano. Esse
ser pensante,
dotado de
condições
excepcionais de
análise e
conclusões
lógicas,
deixa-se sempre
envolver por
suas emoções.
Afinal, não
seria mais
razoável se tudo
se limitasse a
fórmulas e
equações com
resultados
objetivos, dizia
ele com grande
eloquência,
quando em
conversas com a
parentela ou
amigos próximos.
Por que quis
Deus criar no
espírito humano
essa condição
emocional que
tanto complica?
Pois bem, para
buscar alguma
explicação
plausível,
deteve-se, certa
feita, na
análise do
comportamento de
alguns ícones,
que se tornaram,
pelo exemplo,
grandes
referências do
pensamento
humano.
Gandhi havia
enfrentado o
poder de seu
tempo propagando
a sua mensagem
de não violência
e conseguiu
criar uma Índia
independente;
Madre Tereza de
Calcutá devotou
toda a sua vida
a ajudar e
amparar os mais
necessitados,
sem visar a
ganhos e
compensações
pessoais; Paulo
de Tarso, o
apóstolo, um dos
principais
responsáveis
pela expansão da
mensagem cristã
pelo mundo
conhecido, em
sua época,
abandonou todas
as vantagens do
poder e do ouro
para se dedicar
a uma causa,
cuja divulgação
preencheu o seu
espírito com a
mais pura
alegria. Dizia
ele: “Já
estou
crucificado com
Cristo; e vivo,
não mais eu, mas
Cristo vive em
mim”.
E Jesus, então,
o que dizer de
seu total
desprendimento e
entrega por
todos aqueles a
quem chamava de
irmãos e que o
colocaram numa
cruz infamante,
provocando a sua
morte?
Jurandir era
cristão e já
tinha tido a
oportunidade de
folhear o
Novo Testamento,
porém sem
aprofundar-se no
sentido real das
palavras do
Mestre. Ele não
conseguia
entender o
porquê de Sua
atitude de não
se rebelar
contra aquela
injustiça que
sofria. Isso não
fazia sentido
para seu
raciocínio
lógico. As
últimas palavras
de Jesus,
expirando na
cruz, foram de
perdão a todos
que cometiam
aquele tremendo
crime. Como isso
era possível?!
Já havia
escutado, muitas
vezes, preleções
sobre a
necessidade de
perdoar, tinha
lido o Novo
Testamento
várias vezes,
bem como
discutido o
assunto com
amigos e pessoas
mais próximas e,
no entanto, não
tivera sucesso
algum.
Acreditava ser
mais certo tirar
a limpo todas as
situações,
chamando à
responsabilidade
todo aquele que
assumisse a
condição de
agressor,
obrigando-o ao
justo acerto de
contas. Afinal,
como seria
possível deixar
de cobrar o
justo diante de
uma afronta
recebida? Não é
o criminoso
passível de
pena? Essa
atitude não
incentivaria os
maus elementos a
produzirem
maiores males?
Tais questões
abrasavam a
mente de
Jurandir, na
busca de alguma
resposta que lhe
pudesse abrandar
o coração.
Lembremos que
ele sempre está
à caça de
conclusões
lógicas e,
quando isso não
é possível, o
assunto fica
remoendo até que
consiga
organizar uma
resposta que lhe
seja
satisfatória.
Continuava
pensando que
essa história de
perdoar era algo
romântico, bom
para palestras
religiosas e
para os menos
avisados e
ingênuos.
Certa tarde,
conversando com
um amigo,
Jurandir trouxe
a questão que o
importunava por
demasiado tempo.
Explicava ele, a
seu amigo, que
não conseguia
entender a
questão da
necessidade do
perdão,
considerando-a
como uma simples
convenção, e
reforçava que as
pessoas tinham,
sim, o direito
de cobrar aquilo
que lhes era
justo, deixando
para Deus a
função de julgar
e perdoar a quem
merecesse
perdão.
Ricardo, o amigo
prestativo,
sorrindo,
começou a falar
a respeito de
suas concepções
sobre a questão.
Disse ele ao
amigo:
- Jurandir, eu
por minha parte
também busco
compreender o
perdão, embora
deva admitir que
não seja tarefa
de fácil
resolução. Por
muito tempo,
também eu me
debati com essa
questão, e por
não conseguir
atinar com
alguma resposta
que me
satisfizesse,
continuei
entranhando-me
por vias
tortuosas
desenhadas pela
incompreensão,
pelo orgulho e
pelo egoísmo.
Ia continuar
discorrendo
sobre suas
ideias, porém
resolveu
questionar o
amigo Jurandir
sobre suas
convicções em
relação à
religião.
- Você tem
alguma convicção
religiosa? -
perguntou
Ricardo.
- Sim, respondeu
Jurandir, de
forma meio
desconfortável.
Tenho lá minhas
noções
religiosas, que
são mais da
aprendizagem com
a família do que
de convicção
própria. Como
todo mundo,
tento cumprir
com alguns
compromissos
nesse campo,
porém devo
admitir,
realmente, que
não sou
praticante de
religião alguma.
- Entendo. -
respondeu
Ricardo em tom
meio
melancólico. -
Como você deve
saber -
continuou ele -,
eu abracei a fé
espírita, e
tenho encontrado
consolação para
o meu coração,
pois aprendi que
a fé pode ser
raciocinada e
não imposta de
maneira
dogmática ou que
busque atender
mais a questões
sociais do que a
desenvolver uma
convicção
pessoal
fortalecida.
Deixe-me contar
uma pequena
experiência que
tive outro dia e
espero que isso
o ajude a pensar
sobre as suas
angústias com
relação ao
perdão.
Jurandir
começava a
encarar o amigo
num misto de
desdém e ironia.
Pensava consigo
mesmo: Lá vem
o Ricardo querer
me converter!
Mas, em função
do respeito e da
amizade, prestou
a devida atenção
à história que o
amigo iniciava.
- Certa noite -
disse Ricardo -
estava numa
palestra
evangélica na
instituição da
qual participo.
O tema era
exatamente esse:
o perdão. O
palestrante
iniciava sua
fala explicando
a passagem na
qual o apóstolo
Pedro,
aproximando-se
de Jesus,
pergunta-lhe nos
seguintes
termos: “Senhor,
até quantas
vezes pecará meu
irmão contra
mim, e eu lhe
perdoarei? Até
sete? Jesus lhe
disse: Não te
digo que até
sete, mas até
setenta vezes
sete”.[2]
Ao ouvir a
citação feita
pelo amigo,
Jurandir,
imediatamente,
fez uma continha
de cabeça.
Pensou: setenta
vezes sete é
igual a 490
vezes. Será que
essa é a
quantidade
máxima de perdão
a ser dada na
vida?
Quase
interrompeu seu
amigo para
expressar sua
conclusão,
porém, Ricardo
explicava de
forma tão serena
e com tal
convicção o que
havia ouvido a
respeito do
perdão, na
citada palestra,
que Jurandir
decidiu
continuar
ouvindo o que
ele dizia.
- É uma das mais
difíceis
conquistas
humanas -
continuava
Ricardo,
repetindo as
palavras do
palestrante. -
Para isso
acontecer de
forma sincera é
necessário que o
indivíduo
desapegue-se de
forma abnegada,
entendendo que,
se alguém errou
contra ele,
também ele já
teria errado,
várias vezes,
contra outros,
sendo ainda mais
necessitado de
perdão.
Jurandir torcia
o nariz diante
daquela fala
“ilógica” e
completamente
sem fundamentos,
conforme seu
modo de pensar.
Continuava
acreditando que
a justiça está
mais no olho por
olho e que essa
atitude a nada
levava, a não
ser a mais
injustiças.
Tendo Ricardo
percebido que
seu amigo estava
desconfortável
com sua fala,
resolveu
questioná-lo
sobre como
entendia essa
citação
evangélica, e
disse:
- Jurandir, o
que pensa você
sobre essa
questão de se
perdoar setenta
vezes sete?
Jurandir, de
forma jocosa,
respondeu com
outra pergunta:
- Então, quer
dizer que se a
gente perdoar
quatrocentas e
noventa vezes,
já estaremos
todos perdoados?
Ricardo riu-se
discretamente da
pouca
compreensão do
amigo a respeito
do que Jesus
queria de fato
ensinar, a todos
nós, sobre ser o
perdão
ilimitado.
Percebendo que o
amigo Jurandir
ainda precisava
de mais tempo
para digerir
melhor aquelas
palavras,
continuou a
dizer:
- Mas o que
significa, para
você, perdoar
quatrocentas e
noventa vezes
aquele que
ofendeu?
Jurandir
sentiu-se um
pouco chocado
com a inesperada
questão e ficou
emudecido.
Ricardo, no
entanto,
continuou:
-
Já que você é um
matemático,
ajude-me a fazer
alguns cálculos.
Tomemos um dia
comum. Das vinte
e quatro horas,
dormimos em
média oito
horas, restando
dezesseis horas
para nossas
atividades.
Dividindo-se
quatrocentos e
noventa por
dezesseis horas,
temos o número
aproximado de
trinta vezes por
hora ou uma vez
a cada dois
minutos.
Nesse instante
Jurandir
arregalou os
olhos e disse:
- Por dia? Eu
pensei em
quatrocentas e
noventa vezes
numa vida
inteira!
Ricardo riu,
novamente, da
ingenuidade do
amigo, que
complementava:
- Por que Jesus
está nos
orientando que
devemos perdoar
a cada dois
minutos quem nos
ofendeu? Por que
tantas vezes?
Uma ou outra vez
não basta? –
perguntou
Jurandir.
Ricardo, olhando
para o amigo de
forma muito
terna, disse:
- Meu caro
Jurandir, a
condição humana
é ainda muito
animalizada.
Estamos a meio
caminho entre a
fera do passado
e o anjo do
futuro. É óbvio
que, enquanto
não depurarmos
nossa forma de
pensar e agir,
praticando mais
a caridade e o
perdão,
trilharemos,
ainda mais,
estradas cheias
de
ressentimento,
ódio, rancor e
ira, sentimentos
que poluem nosso
mundo interior,
provocando
distúrbios no
campo do
Espírito que,
indubitavelmente,
afetarão também
o campo das
células
corpóreas,
gerando
situações
tristes de dor e
sofrimento.
A atitude de
buscar a
reparação,
quando justa -
continuou
Ricardo -, não
está interditada
a ninguém, e os
meios existem
para que isso
aconteça. No
entanto, quase
sempre, a
intenção de
reparação vem
acompanhada do
desejo de
subjugar o
“algoz” e, se
possível,
sufocá-lo até à
morte. Lembremos
o nobre
ensinamento de
Jesus sobre “dar
a outra face”,
brilhantemente
explicado por
Kardec: “Levado
o ensino às suas
últimas
consequências,
importaria ele
em condenar toda
repressão, mesmo
legal, e deixar
livre o campo
aos maus,
isentando-os de
todo e qualquer
motivo de temor.
Se se lhes não
pusesse um freio
às agressões,
bem depressa
todos os bons
seriam suas
vítimas. O
próprio instinto
de conservação,
que é uma lei da
Natureza, obsta
a que alguém
estenda o
pescoço ao
assassino.
Enunciando,
pois, aquela
máxima, não
pretendeu Jesus
interdizer toda
defesa, mas
condenar a
vingança”.
Essa
determinação em
busca da
“justiça” mais
imediatista, e
de acordo com os
padrões do homem
comum -
continuou
Ricardo mais
entusiasmado -,
só demonstra a
real necessidade
de uma reforma
interior, com
vistas à
libertação do
espírito
imortal,
habilitando-o
para regiões
mais felizes da
criação.
Nesse ponto da
conversa,
Jurandir volta à
sua
argumentação,
dizendo:
- Ora vamos,
Ricardo, tudo
isso é muito
bonito, mas eu
preciso de
comprovações
racionais, e a
religião não
possui os
elementos para a
comprovação do
que você afirma,
meu amigo!
Ricardo ri e
argumenta:
- Você é muito
cético,
Jurandir, e
acredita que
tudo se explique
através das
equações. Devo
lembrá-lo, no
entanto, a
citação feita
por um dos
maiores e mais
respeitados
cientistas:
Albert Einstein.
Ele disse: “A
ciência sem
religião é
manca, a
religião sem a
ciência é cega”.
E continuando a
exposição,
disse: - o
perdão não é só
uma questão de
religiosidade.
Ele tem
fundamentos
científicos. A
física quântica
já nos dá
informações que
comprovam que
nosso cérebro
reage de formas
diferentes
quando emitimos
pensamentos e
sentimentos de
amor, fé,
esperança, do
que quando
estamos irados,
nervosos e
agressivos.
Acredite, meu
amigo, a vida
não se resume a
números. Vamos
relembrar Jesus:
“Está
escrito: Nem só
de pão viverá o
homem, mas de
toda a palavra
que sai da boca
de Deus”.
A própria
ciência -
continuou
Ricardo - já
está caminhando
para a
comprovação das
ideias de alma e
de continuidade
da vida, através
da análise das
reações
físico-químicas
que ocorrem em
nosso organismo,
notadamente no
cérebro humano,
por meio de
estudos
realizados pelas
neurociências.
Jurandir,
impressionado
pela exposição
calorosa do
amigo Ricardo,
disse:
- É, Ricardo,
você realmente
acredita nessa
ideia. Eu, por
minha vez,
fiquei
impressionado
pela sua
eloquência. Você
deu-me elementos
de análise que,
devo admitir,
nunca haviam
passado pela
minha cabeça.
Prometo que vou
meditar a
respeito.
Ricardo,
satisfeito com a
reação do amigo,
declarou:
- Fico muito
feliz de
contribuir para
sua reflexão.
Minha intenção
foi exatamente
essa, desde o
início de nossa
agradável
conversa, embora
você pudesse ter
pensado que eu
queria mesmo era
convertê-lo.
Ricardo riu-se
muito.
Jurandir, um
tanto acanhado,
retrucou:
- Realmente,
parece que você
leu meu
pensamento.
O assunto já ia
para o seu final
quando Ricardo
arrematou:
- Para que esta
conversa termine
de forma
completa, quero
citar um
ensinamento de
um Espírito
iluminado pela
experiência e
dedicação à
causa cristã.
Seu nome é
Joanna de
Ângelis. Diz a
querida mentora:
“É necessário
aprender-se a
amar, porquanto
o amor também se
aprende”.
E eu
pergunto: Existe
forma mais
perfeita de
expressar-se o
amor, do que o
perdão das
ofensas?
Medite sobre
isso meu irmão,
e que seu
esforço de
crescimento
espiritual seja
abençoado pela
paz da
consciência
tranquila.