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Crônicas e Artigos

Ano 9 - N° 425 - 2 de Agosto de 2015

MARCELO TEIXEIRA
maltemtx@uol.com.br
Petrópolis, RJ (Brasil)

 


A ilusão da família perfeita


Era uma vez Aloísio e Vera, um casal muito simpático; ambos de família espírita e atuantes no movimento. Desde o namoro, todos viam que seria um casamento que daria certo. E deu. Aloísio e Vera, com amor, companheirismo e tolerância, souberam construir uma relação saudável em todos os sentidos.

Aloísio era advogado; Vera, professora. Ambos muito bem-sucedidos e estimados. E, como dedicados trabalhadores da seara espírita, sempre estiveram à frente em vários setores, não só do centro espírita, mas também do movimento espírita municipal e estadual. Enfim, Aloísio e Vera seguiram a tradição familiar e abraçaram o movimento espírita com determinação, trabalhando com afinco por ele e para ele.

A união e a estabilidade de Aloísio e Vera, aliadas à dedicação de ambos à causa espírita, faziam com que o casal estivesse sempre cercado de admiração por todos. Era referência no movimento espírita.

Dentre as várias atividades, o casal estivera, por um bom tempo, à frente da mocidade. Como evangelizadores, falavam para os jovens sobre felicidade conjugal, fidelidade, importância do namoro, formação familiar, divórcio... Tudo sempre visando a que os jovens, futuramente, encontrassem parceiro ideal e formassem um casal feliz como eles.

Aloísio e Vera tinham três filhos: Douglas, Vítor e Luciana. E também tinham irmãos, cunhados, sobrinhos...

Toda vez que um casal do movimento espírita local se separava, Aloísio e Vera, construtivamente, criticavam. Não entendiam aonde havia ido parar o amor que um prometera ao outro; diziam que as pessoas estavam brincando de casar; reprovavam o fim da união... Quando era na família de um deles, também. Irmãos e sobrinhos costumavam ser alvos de crítica caso se separassem, namorassem sem casar, ou “ficassem”, algo muito comum hoje em dia. Na visão deles, um espírita não poderia se separar ou fazer sexo sem se casar. E o casamento deveria ser de papel passado.

Os filhos do casal ainda eram pequenos, e Aloísio e Vera olhavam os três com olhos alvissareiros. Na visão de ambos, os filhos não passariam por tempestades conjugais ou afetivas. Afinal, eram espíritas de berço, cresceram dentro do centro espírita. Começaram na evangelização infantil e, em seguida, iriam para a mocidade. Mais adiante, já adultos e plenamente integrados ao movimento espírita, teriam tarefas variadas no centro e, quiçá, no movimento espírita da cidade ou do Estado. Ato contínuo, eles se casariam com pessoas do próprio movimento espírita e teriam uniões conjugais perfeitas. Se não fossem espíritas, os escolhidos dos filhos decerto adeririam à causa, pois ninguém resiste ao Consolador Prometido.

Filhos, noras e genros espíritas, netos espíritas, casamentos perfeitos e felizes! Aloísio e Vera vislumbravam a possibilidade de envelhecerem cercados por descendentes e agregados espíritas, diferentemente dos familiares e amigos, sempre às voltas com separações.

Tudo ia bem na vida e nas esperanças do nosso feliz casal até que, um dia, Douglas, Vítor e Luciana entraram na vida adulta.

Douglas, o mais velho, dentista, casou-se como manda o figurino. E com uma moça espírita, ainda por cima, para felicidade e contentamento dos pais.  Dois anos depois, o casamento acabava. Douglas e a esposa haviam chegado à conclusão que não se amavam tanto a ponto de quererem a companhia um do outro por anos a fio. Vera, a mãe, ficou muito chocada. Aloísio, o pai, chorou convulsivamente. Aquele deve ter sido o dia mais triste da vida dele. O casal espírita que havia idealizado filhos perfeitos com casamentos da mesma forma experimentava o gosto amargo da separação do mais velho.

Depois da separação, Douglas não quis voltar para a casa dos pais. Foi morar sozinho. Livre como nunca pensara. De vez em quando, aparecia no centro para tomar um passe. Mas não se interessava em, digamos, seguir carreira no movimento espírita.

Mais adiante, Douglas conheceu Talita, uma jovem com quem prontamente se afinou. Talita era mãe solteira de Carolina, menina que adorou Douglas assim que o conheceu (e ele, a ela). Foram morar juntos. Passado um tempinho, Douglas e Talita já eram pais de Carolina. O tão sonhado neto – no caso, uma neta – de Aloísio e Vera chegara, mas não da forma como haviam sonhado. Foi uma alegria mesclada com uma pitada de descontentamento. Afinal, a nora era mãe solteira.

Vítor, o filho do meio, chef de cozinha, também se casou. Dono de um restaurante, conheceu Elaine, a esposa, especialista em vinhos, durante um evento. O casamento de Vítor deu certo. Ele encontrou de fato uma mulher que o completava, só que, ambos, devido aos vários eventos e viagens proporcionados na área em que atuavam, resolveram não ter filhos. Além disso, Vítor, que até então, por orientação dos pais, não dera importância a bebidas alcoólicas, passou, por influência da esposa e da profissão, a ser um apreciador dos bons vinhos. Ele não se tornou um bebedor contumaz, deixo claro. Mas gostava de harmonizar, ou seja, escolher que tipo de vinho ia melhor com carne bovina, peixe, cordeiro e por aí vai. Como espírita que era, gostava de estar no centro. Sempre que podia, ajudava nos eventos gastronômicos. Já preparara incríveis almoços beneficentes. Não dava expediente em outras atividades por causa do restaurante e das viagens e eventos gastronômicos em que, com prazer, estava sempre envolvido.

Aloísio e Vera esperavam mais da união feliz de Vítor. Era um casamento que tinha tudo para lhes dar netos, mas Vítor e a esposa tiveram outros planos. E quando nosso casal de espíritas perfeito soube que o filho gostava de harmonizar os pratos por ele preparados com vinhos de uva tipo merlot,cabernet sauvignon etc., ficou muito triste. Exagero! Vítor não é nenhum alcoólatra! Graças à formação religiosa que teve, sabe muito bem o que faz!

Por fim, Luciana, a caçula, profissional da área de turismo, aos 22 anos, conheceu Carlos, um executivo de 45, separado, e pai de três filhos. Ambos se gostaram e foram morar juntos, para decepção dos pais, que sonhavam um casamento de princesa para a única filha mulher. Não houve papel passado, nem bolo, nem doces. Luciana comunicou a decisão aos pais e, dias depois, fez as malas e se mudou para a casa do amado, com quem vive muito feliz até hoje.

Ela e Carlos também não quiseram filhos. Ele já tinha três, e ela era nova; queria terminar os estudos e curtir o charmoso quarentão por quem se apaixonara. E como se entrosou muito bem com os enteados, praticamente da mesma idade dela, Luciana nunca teve muita vontade de ser mãe; deu-se por satisfeita como jovem madrasta de três adolescentes.

Como boa espírita, Luciana frequentava um centro. Era evangelizadora de mocidade já que sempre gostou de lidar com jovens. Tanto que os enteados gostavam muito dela.

Foi difícil para os pais aceitarem a decisão de Luciana. Até evitavam conversar sobre ela. Quando alguém perguntava, diziam que ela estava estudando no exterior. Embora não admitissem, Aloísio e Vera estavam com vergonha da filha. Acharam que sua atitude não condizia com a de uma moça de família. Ainda mais família espírita! Depois, felizmente, a poeira assentou.

Tempos depois, Magda, prima de Vera, trouxe o casal à realidade. Após ouvir os dois tecerem um tapete de lamentações e decepções para com a prole, disse aos dois: – Sinto muito. Mas foi a melhor coisa que aconteceu a vocês.

– Como assim? –retrucou Vera, atônita.

–Vocês– disse Magda–sempre se acharam melhores do que os demais familiares e o pessoal do centro espírita. Sempre se acharam um modelo de família. Tinham a ilusão de que os filhos seriam iguais a vocês. Não contavam que eles cresceriam e fariam suas próprias escolhas. Vocês sempre acharam que as pessoas que não são espíritas, tal como vocês, não seriam tão bons espíritas como vocês. As escolhas dos meninos fizeram vocês colocarem os pés no chão.

Magda quis dizer que o fato de Douglas, Vítor e Luciana serem espíritas não os isentava de serem cidadãos do mundo de hoje, em que o livre-arbítrio é mais dilatado. Um mundo no qual as mulheres são livres para administrarem a vida afetiva, sexual e profissional. Um mundo no qual o casamento de papel passado deixou de ser a única porta de entrada para a vida adulta. Um mundo no qual uma pessoa separada não carrega mais o estigma de décadas atrás. E quis dizer também que Aloísio e Vera não haviam falhado como pais. Pelo contrário, haviam dado aos três, desde a mais tenra idade, amor à luz da imortalidade da alma. Um amor capaz de torná-los seguros para fazer as próprias escolhas sem culpa e com maturidade. E quis dizer também que pais espíritas não devem achar que falharam porque os filhos não quiseram abraçar tarefas no centro espírita. Se quiserem, ótimo! Sempre há trabalho esperando. Mas o que importavaé que os três eram boas pessoas, cidadãos do bem, éticos, íntegros, queridos, honestos e com sólida formação cristã e moral para seguirem suas vidas; espíritas, quer estivessem ou não integrados ao movimento espírita. E, acima de tudo, eram três irmãos que se adoravam e gostavam muito dos pais.

A partir da advertência de Magda, Aloísio e Vera passaram a perceber que, de fato, os filhos estavam felizes com as próprias escolhas. Os três eram adultos. Portanto, competia a eles viver suas vidas e arcarem com as consequências de seus erros e acertos. Mesmo porque, Talita, Elaine e Carlos eram boa gente. Aloísio e Vera deixaram de lado o pé atrás e facilitaram a aproximação dos três. Com isso, perceberam que a filha mais velha de Talita e os três filhos de Carlos também gostavam muito deles. Por que não aceitá-los como netos também? Aceitaram. Essa abertura gerou um grande bem-estar para todo mundo.

Daí por diante, nosso casal passou a cuidar mais um do outro, a viajar mais vezes. Iniciaram até atividades físicas. Enfim, foram viver sua vida de casal feliz, aceitaram as escolhas dos filhos e recuperaram a harmonia.

A ilusão da família perfeita nos moldes por eles estabelecidos terminara. Aloísio e Vera haviam se humanizado. Tornaram-se, inclusive, não só melhores pessoas, como melhores espíritas. Menos bitolados, menos rigorosos... Mais tolerantes, flexíveis, arejados, modernos e compreensivos! 


 

 


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O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita