A ilusão da família
perfeita
Era uma vez Aloísio e
Vera, um casal muito
simpático; ambos de
família espírita e
atuantes no movimento.
Desde o namoro, todos
viam que seria um
casamento que daria
certo. E deu. Aloísio e
Vera, com amor,
companheirismo e
tolerância, souberam
construir uma relação
saudável em todos os
sentidos.
Aloísio era advogado;
Vera, professora. Ambos
muito bem-sucedidos e
estimados. E, como
dedicados trabalhadores
da seara espírita,
sempre estiveram à
frente em vários
setores, não só do
centro espírita, mas
também do movimento
espírita municipal e
estadual. Enfim, Aloísio
e Vera seguiram a
tradição familiar e
abraçaram o movimento
espírita com
determinação,
trabalhando com afinco
por ele e para ele.
A união e a estabilidade
de Aloísio e Vera,
aliadas à dedicação de
ambos à causa espírita,
faziam com que o casal
estivesse sempre cercado
de admiração por todos.
Era referência no
movimento espírita.
Dentre as várias
atividades, o casal
estivera, por um bom
tempo, à frente da
mocidade. Como
evangelizadores, falavam
para os jovens sobre
felicidade conjugal,
fidelidade, importância
do namoro, formação
familiar, divórcio...
Tudo sempre visando a
que os jovens,
futuramente,
encontrassem parceiro
ideal e formassem um
casal feliz como eles.
Aloísio e Vera tinham
três filhos: Douglas,
Vítor e Luciana. E
também tinham irmãos,
cunhados, sobrinhos...
Toda vez que um casal do
movimento espírita local
se separava, Aloísio e
Vera, construtivamente,
criticavam. Não
entendiam aonde havia
ido parar o amor que um
prometera ao outro;
diziam que as pessoas
estavam brincando de
casar; reprovavam o fim
da união... Quando era
na família de um deles,
também. Irmãos e
sobrinhos costumavam ser
alvos de crítica caso se
separassem, namorassem
sem casar, ou
“ficassem”, algo muito
comum hoje em dia. Na
visão deles, um espírita
não poderia se separar
ou fazer sexo sem se
casar. E o casamento
deveria ser de papel
passado.
Os filhos do casal ainda
eram pequenos, e Aloísio
e Vera olhavam os três
com olhos alvissareiros.
Na visão de ambos, os
filhos não passariam por
tempestades conjugais ou
afetivas. Afinal, eram
espíritas de berço,
cresceram dentro do
centro espírita.
Começaram na
evangelização infantil
e, em seguida, iriam
para a mocidade. Mais
adiante, já adultos e
plenamente integrados ao
movimento espírita,
teriam tarefas variadas
no centro e, quiçá, no
movimento espírita da
cidade ou do Estado. Ato
contínuo, eles se
casariam com pessoas do
próprio movimento
espírita e teriam uniões
conjugais perfeitas. Se
não fossem espíritas, os
escolhidos dos filhos
decerto adeririam à
causa, pois ninguém
resiste ao Consolador
Prometido.
Filhos, noras e genros
espíritas, netos
espíritas, casamentos
perfeitos e felizes!
Aloísio e Vera
vislumbravam a
possibilidade de
envelhecerem cercados
por descendentes e
agregados espíritas,
diferentemente dos
familiares e amigos,
sempre às voltas com
separações.
Tudo ia bem na vida e
nas esperanças do nosso
feliz casal até que, um
dia, Douglas, Vítor e
Luciana entraram na vida
adulta.
Douglas, o mais velho,
dentista, casou-se como
manda o figurino. E com
uma moça espírita, ainda
por cima, para
felicidade e
contentamento dos pais.
Dois anos depois, o
casamento acabava.
Douglas e a esposa
haviam chegado à
conclusão que não se
amavam tanto a ponto de
quererem a companhia um
do outro por anos a fio.
Vera, a mãe, ficou muito
chocada. Aloísio, o pai,
chorou convulsivamente.
Aquele deve ter sido o
dia mais triste da vida
dele. O casal espírita
que havia idealizado
filhos perfeitos com
casamentos da mesma
forma experimentava o
gosto amargo da
separação do mais velho.
Depois da separação,
Douglas não quis voltar
para a casa dos pais.
Foi morar sozinho. Livre
como nunca pensara. De
vez em quando, aparecia
no centro para tomar um
passe. Mas não se
interessava em, digamos,
seguir carreira no
movimento espírita.
Mais adiante, Douglas
conheceu Talita, uma
jovem com quem
prontamente se afinou.
Talita era mãe solteira
de Carolina, menina que
adorou Douglas assim que
o conheceu (e ele, a
ela). Foram morar
juntos. Passado um
tempinho, Douglas e
Talita já eram pais de
Carolina. O tão sonhado
neto – no caso, uma neta
– de Aloísio e Vera
chegara, mas não da
forma como haviam
sonhado. Foi uma alegria
mesclada com uma pitada
de descontentamento.
Afinal, a nora era mãe
solteira.
Vítor, o filho do meio,
chef de cozinha,
também se casou. Dono de
um restaurante, conheceu
Elaine, a esposa,
especialista em vinhos,
durante um evento. O
casamento de Vítor deu
certo. Ele encontrou de
fato uma mulher que o
completava, só que,
ambos, devido aos vários
eventos e viagens
proporcionados na área
em que atuavam,
resolveram não ter
filhos. Além disso,
Vítor, que até então,
por orientação dos pais,
não dera importância a
bebidas alcoólicas,
passou, por influência
da esposa e da
profissão, a ser um
apreciador dos bons
vinhos. Ele não se
tornou um bebedor
contumaz, deixo claro.
Mas gostava de
harmonizar, ou seja,
escolher que tipo de
vinho ia melhor com
carne bovina, peixe,
cordeiro e por aí vai.
Como espírita que era,
gostava de estar no
centro. Sempre que
podia, ajudava nos
eventos gastronômicos.
Já preparara incríveis
almoços beneficentes.
Não dava expediente em
outras atividades por
causa do restaurante e
das viagens e eventos
gastronômicos em que,
com prazer, estava
sempre envolvido.
Aloísio e Vera esperavam
mais da união feliz de
Vítor. Era um casamento
que tinha tudo para lhes
dar netos, mas Vítor e a
esposa tiveram outros
planos. E quando nosso
casal de espíritas
perfeito soube que o
filho gostava de
harmonizar os pratos por
ele preparados com
vinhos de uva tipo
merlot,cabernet
sauvignon etc.,
ficou muito triste.
Exagero! Vítor não é
nenhum alcoólatra!
Graças à formação
religiosa que teve, sabe
muito bem o que faz!
Por fim, Luciana, a
caçula, profissional da
área de turismo, aos 22
anos, conheceu Carlos,
um executivo de 45,
separado, e pai de três
filhos. Ambos se
gostaram e foram morar
juntos, para decepção
dos pais, que sonhavam
um casamento de princesa
para a única filha
mulher. Não houve papel
passado, nem bolo, nem
doces. Luciana comunicou
a decisão aos pais e,
dias depois, fez as
malas e se mudou para a
casa do amado, com quem
vive muito feliz até
hoje.
Ela e Carlos também não
quiseram filhos. Ele já
tinha três, e ela era
nova; queria terminar os
estudos e curtir o
charmoso quarentão por
quem se apaixonara. E
como se entrosou muito
bem com os enteados,
praticamente da mesma
idade dela, Luciana
nunca teve muita vontade
de ser mãe; deu-se por
satisfeita como jovem
madrasta de três
adolescentes.
Como boa espírita,
Luciana frequentava um
centro. Era
evangelizadora de
mocidade já que sempre
gostou de lidar com
jovens. Tanto que os
enteados gostavam muito
dela.
Foi difícil para os pais
aceitarem a decisão de
Luciana. Até evitavam
conversar sobre ela.
Quando alguém
perguntava, diziam que
ela estava estudando no
exterior. Embora não
admitissem, Aloísio e
Vera estavam com
vergonha da filha.
Acharam que sua atitude
não condizia com a de
uma moça de família.
Ainda mais família
espírita! Depois,
felizmente, a poeira
assentou.
Tempos depois, Magda,
prima de Vera, trouxe o
casal à realidade. Após
ouvir os dois tecerem um
tapete de lamentações e
decepções para com a
prole, disse aos dois:
– Sinto muito. Mas
foi a melhor coisa que
aconteceu a vocês.
– Como assim? –retrucou
Vera, atônita.
–Vocês–
disse Magda–sempre se
acharam melhores do que
os demais familiares e o
pessoal do centro
espírita. Sempre se
acharam um modelo de
família. Tinham a ilusão
de que os filhos seriam
iguais a vocês. Não
contavam que eles
cresceriam e fariam suas
próprias escolhas. Vocês
sempre acharam que as
pessoas que não são
espíritas, tal como
vocês, não seriam tão
bons espíritas como
vocês. As escolhas dos
meninos fizeram vocês
colocarem os pés no
chão.
Magda quis dizer que o
fato de Douglas, Vítor e
Luciana serem espíritas
não os isentava de serem
cidadãos do mundo de
hoje, em que o
livre-arbítrio é mais
dilatado. Um mundo no
qual as mulheres são
livres para
administrarem a vida
afetiva, sexual e
profissional. Um mundo
no qual o casamento de
papel passado deixou de
ser a única porta de
entrada para a vida
adulta. Um mundo no qual
uma pessoa separada não
carrega mais o estigma
de décadas atrás. E quis
dizer também que Aloísio
e Vera não haviam
falhado como pais. Pelo
contrário, haviam dado
aos três, desde a mais
tenra idade, amor à luz
da imortalidade da alma.
Um amor capaz de
torná-los seguros para
fazer as próprias
escolhas sem culpa e com
maturidade. E quis dizer
também que pais
espíritas não devem
achar que falharam
porque os filhos não
quiseram abraçar tarefas
no centro espírita. Se
quiserem, ótimo! Sempre
há trabalho esperando.
Mas o que importavaé que
os três eram boas
pessoas, cidadãos do
bem, éticos, íntegros,
queridos, honestos e com
sólida formação cristã e
moral para seguirem suas
vidas; espíritas, quer
estivessem ou não
integrados ao movimento
espírita. E, acima de
tudo, eram três irmãos
que se adoravam e
gostavam muito dos pais.
A partir da advertência
de Magda, Aloísio e Vera
passaram a perceber que,
de fato, os filhos
estavam felizes com as
próprias escolhas. Os
três eram adultos.
Portanto, competia a
eles viver suas vidas e
arcarem com as
consequências de seus
erros e acertos. Mesmo
porque, Talita, Elaine e
Carlos eram boa gente.
Aloísio e Vera deixaram
de lado o pé atrás e
facilitaram a
aproximação dos três.
Com isso, perceberam que
a filha mais velha de
Talita e os três filhos
de Carlos também
gostavam muito deles.
Por que não aceitá-los
como netos também?
Aceitaram. Essa abertura
gerou um grande
bem-estar para todo
mundo.
Daí por diante, nosso
casal passou a cuidar
mais um do outro, a
viajar mais vezes.
Iniciaram até atividades
físicas. Enfim, foram
viver sua vida de casal
feliz, aceitaram as
escolhas dos filhos e
recuperaram a harmonia.
A ilusão da família
perfeita nos moldes por
eles estabelecidos
terminara. Aloísio e
Vera haviam se
humanizado. Tornaram-se,
inclusive, não só
melhores pessoas, como
melhores espíritas.
Menos bitolados, menos
rigorosos... Mais
tolerantes, flexíveis,
arejados, modernos e
compreensivos!