Devotamento
e
abnegação:
virtudes
análogas
Quando
no
estudo
de “O
Evangelho
segundo
o
Espiritismo”,
sempre
me
desperta
a
atenção
e
causacerta
confusão
o fato
de que
os
Espíritos
algumas
vezes
usam os
termos
abnegação
e
devotamento
como
sinônimos:[i]
falam em
um
quando
se
referem
ao
outro,
ou dizem
que
abnegação
é
devotamento,
ou este
é
aquela.
Contudo,
Kardec e
outros
Espíritos
diferenciam
um termo
do
outro.
Essa
suposta
confusão
ou
desacerto
entre
Kardec e
os
Espíritos
poderia
nos
levar a
pensar
que ou
algunsEspíritos
estão
errados
e Kardec
está
certo,
ou que
este
está
errado e
aqueles
certos.
De
qualquer
maneira,
tal
confusão
poderia
conduzira
uma
desconfiança
na
capacidade
de
Kardec
de
selecionar
e
interpretar
as
mensagens
dos
Espíritos,
ou mesmo
na
validade
da moral
espírita,
já que
não
haveria
entendimento
sobre
definições
morais
basilares.
Quando
Kardec
elencou
as
virtudes
elementares
da
Caridade[ii],
dispôs a
abnegação
ao lado
do
devotamento,
tendo
citado
em
primeiro
lugar a
abnegação.
Desse
modo de
distribuí-las
podemos
deduzir
inicialmente
que não
existe
identificação
total
entre
uma e
outra,
ou seja,
elas são
distintas.
Poderíamos
pensar
também
que uma
está
inclusa
na
outra, o
que
significaria
a
existência
de uma
identidade
parcial.
Porém,
se uma
estivesse
completamente
contida
em outra
ele as
teria
disposto
de
maneira
diferente,
citando
apenas
aquela
que
inclui a
outra.
Por
outro
lado,
pode ser
que
exista
apenas
uma área
de
intersecção
entre
ambas,
ou
nenhuma
área de
intersecção.
Assim
temos
quatro
possibilidades,
1ª)
existe
união
total
entre
ambas,
elas são
iguais,
isto é,
existe
identidade
plena,
b)
existe
pertinência
de uma
em
relação
à outra,
pois uma
estaria
totalmente
inclusa
na
outra;
c)
existe
apenas
identidade
parcial
devido a
uma área
de
intersecção
entre
ambas;
d) não
existe
qualquer
pertinência
entre
ambas,
sendo
totalmente
diferentes,
portanto,
sem
qualquer
identidade.
Tentaremos
resolver
a
confusão
inicialmenteidentificada
verificando
qual das
possibilidades
é a
verdadeira.
Vejamos
primeiramente
o que
assemelha
as duas
virtudes.
Entendemos,
a partir
de
estudos
nas
“obras
básicas”
e dos
luminares
da
moral,
que
devotamento
é o
esforço
desinteressado,
intenso
e
contínuo,
realizado
com
alegria
e
confiança,
pela
aplicação
útil das
forças e
recursos
físicos
e morais
de que
se
dispõe e
nas
condições
em que
se
encontra
o
agente,
após
analise
e
reflexão
do
contexto,
visando
promover
o bem de
outrem[iii].
Por
sua vez,
abnegação
é o
esforço
desinteressado,
intenso
e
contínuo,
realizado
com
alegria
e
confiança,
pela
aplicação
útil das
forças e
recursos
físicos
e morais
de que
dispõe,
e nas
condições
em que
se
encontra
o
agente,
após
analise
e
reflexão
do
contexto,
visando
promover
o bem de
outrem
acima e
prioritariamente
ao
próprio
bem
deste[iv].Ora,
estas
definições,
apresentam
muitas
semelhanças.
As duas
principaissão
o
esforço
e o
objetivo
visado.
O
esforço
é
constitutivo
de
ambas,
esforço
que é a
mobilização
de
“forças”
para
vencer
um
obstáculo
qualquer.
Está
claro,
pelas
exposições
precedentes,
que este
obstáculo
é o
egoísmo
do
próprio
agente.
Mas o
esforço
exige
também a
participação
de
diversas
capacidades
intelectuais
e
afetivas,
como a
reflexão,
a
alegria
e a
confiança
nas leis
divinas.
O
objetivo
visado
é,em
ambas, o
bem de
outrem.São
semelhanças
secundáriasas
seguintes
características:direção,
intensidade
e
persistência
do
esforço.
É em
decorrência
dessas
semelhanças
que
algunsEspíritos
utilizam
os
termos
“devotamento”
e
“abnegação”
como
intercambiáveis,
sobretudo
em “O
Evangelho...”,
mas que
Kardec,
com sua
extrema
atenção
aos
detalhes,
como
poliglota
e
filólogo,
tratou
de
clarear-lhesos
significados,
distinguindo-os
quando
elencou
as
virtudes
componentes
da
Caridade.
Vejamos
alguns
exemplos
que
ilustram
bem esta
questão.
O
primeiro
se
refere à
senhorita
Desirée
Godu,
uma
médium
curadora,
citado
na
Revista
Espírita
do mês
de Março
de 1860,
sob o
título
“Um
médium
Curador”.
Como
médium
curadora,
os
Espíritos
lhes
indicavam
os
remédios,
e
frequentemente
ela
mesma os
preparava
e os
aplicava
nos
doentes,
cuidando
deles e
tratando
as
feridas
mais
repugnantes,
mas
fazia
isso
sempre
com
muita
delicadeza.
Além
disso,
ela
inspirava
os
enfermos
com sua
forte
confiança,
e
contagiando-os
com a
sua
jovialidade,
alegria
e fé, o
que
contribuía
enormemente
para o
rápido
reestabelecimento
deles.
Durante
vários
dias da
semana,
desde as
primeiras
horas da
manhã
até
anoitecer,
sua casa
ficava
repleta
de
pessoas
que
buscavam
o seu
auxílio.
Antes de
tornar-se
médium
curadora
e passar
a tratar
dos
enfermos,
ocupava
seus
dias
confeccionando
roupas
para os
pobres e
para os
recém-nascidos,
e para
não
feri-los
usava
todos os
meios
para que
não
soubessem
quem os
havia
beneficiado.
O autor
deste
relato
diz que
seu
devotamento
assemelha-se
ao de
“uma
irmã de
caridade”.
O
segundo
exemplo,
citado
na
Revista
Espírita
do mês
de maio
de 1866,
refere-se
à “Morte
do
Doutor
Cailleaux”,
médico
que
dedicara
sua vida
a cuidar
dos
enfermose
auxiliar
os
sofredores,
tratando
deles
apesar
da sua
idadeavançada.
Irrompendo
uma
epidemia
de
cólera
em certa
região
da
França,
onde
vivia,
ele
colocou-se
inteiramente
ao
serviço
dos
doentes:
percorreu
aldeias
onde a
epidemia
grassava,
visitando
mais de
800
doentes,
tratando-os
pessoalmente,
aplicando
os
remédios,
sentando
à
cabeceira
dos
moribundos.
Ele
cumpria
este
dever
sem
qualquer
lamentação
ou
queixa,
ao
contrário,
permanecia
sempre
bem-humorado
e
alegre,
o que
influía
decisivamente
na cura
dos
doentes.
Apesar
de
sentir
os
sintomas
de
cólera,
continuou
atendendo-os,
mas não
resistiu
e
morreu.
Devido à
sua ação
decidida
salvou
muitas
famílias,
evitou
que os
pais
ficassem
sem os
filhos,
ou que
estes se
tornassem
órfãos.
O autor
do
comentário
ressalta
que ele
trabalhou
até o
último
dia sem
querer
jamais
repousar,
e que
não
vivia
para si
mesmo,
mas para
os seus
semelhantes.
Pode-se
identificar
nitidamente
no
primeiro
exemplo
o
devotamento,
enquanto
no
segundo
destaca-se
a
abnegação.Ambas
se
assemelham,
mas do
próprio
texto
percebemos
a
existência
de algo
diferente.
Mas o
que
diferencia
uma
virtude
da
outra?
No
devotamento,
o
agente,
embora
mobilizando
suas
capacidades
internas,
doa algo
externo
ao
outro,
enquanto
que na
abnegação,
o
agente,
embora
mobilizando
as
mesmas
capacidades,
doa ao
outro
algo de
interno
a si
mesmo.
Há,
assim,
uma
diferença
importante
entre
ambas,
pois
utilizar
nossas
potencialidades,
condições
e
situações
materiais
para
promover
o bem do
outro e
doar a
si mesmo
para
promover
este
mesmo
bem
exige
que a
intensidade
do
esforço
seja
amplificada
para
níveis
extremos,
tão
altos
que
somente
Espíritos
de escol
conseguem
realizá-lo
completamente.
O que
queremos
dizer é
que a
diferença
entre
ambas é
de grau;
expressando-nos
de outra
maneira,
há uma
diferença
qualitativa.Existe
como que
um
“ponto
de
emergência”,
um
momento
em não
há
transformação
de um em
outro,
mas sim
como que
a
geração
de uma
virtude
a partir
de
outra.
Assim, a
abnegação
emerge
sem que
desapareça
o
devotamento,
pois
elas
passam a
coexistir.
No
devotamento
há uma
doação
de algo
externo,
sem que
aconteça
a
entrega
total do
agente
ao bem
do
outro;
continua
existindo
como que
uma
preservação
da vida
do
agente.
Já na
abnegação,
o bem do
outro é
colocado
acima de
qualquer
condição;
o agente
se
entrega
totalmente
ao seu
objetivo,
rompendo
inclusive
com
todas as
barreiras
de
autopreservação.
Claramente,
a
abnegação
exige
sempre a
reflexão
e a
utilização
das
capacidades
intelectivas
do
agente;
não
ocorre
renúncia
à
racionalidade,
mas sim
renúncia
ao
próprio
egoísmo.
É bom
lembrar
que uma
virtudesem
reflexão
pode
transformar-se
em vício
com
muita
facilidade.
Num
exemplo
dado por
Kardec
ao
elogiar
os
espíritas
espanhóis,
esse
“ponto
de
emergência”
é
destacado:
Já
tivemos
muitas
vezes a
ocasião
de dizer
que a
Espanha
contava
com
numerosos
adeptos,
sinceros,
devotados
e
esclarecidos;
aqui,
é mais
do que o
devotamento,
é a
abnegação;
não uma
abnegação
irrefletida,
mas
calma,
fria,
como a
do
soldado
que
caminha
para o
combate
dizendo
a si
mesmo:
O que
quer que
me custe
isto, eu
cumprirei
o meu
dever.
[...]é
o
devotamento
daquele
que
coloca o
interesse
de todos
antes do
interesse
pessoal[v].(grifos
nossos).
Observemos
que no
primeiro
grifo
Kardec
aponta
para um
algo
mais,
algo que
está
além do
devotamento.
No
segundo,
a
principal
característica
da
abnegação,
a doação
da
própria
vida é
destacada,
ao ser a
abnegação
dos
espíritas
espanhóis
comparada
com a do
soldado
que
cumpre o
seu
dever,
mesmo
que à
custa da
própria
vida. No
terceiro
grifo
ele
procura
esclarecer
o
significado
de
abnegação
comparando-o
com o
devotamento,
mas
mostrando
que
nesta o
bem de
outrem é
prioritário
ao
interesse
pessoal.
Podemos
entrever,
da mesma
forma,
que
existe
um
momento
em que
surge a
abnegação
a partir
do
devotamento.
Este
momento
é aquele
em que o
Espírito
entende,
finalmente,
que é
seu
dever
fazer
tudo o
que for
possível
pelo bem
de
outrem,
doando
tudo
aquilo
que é
somente
seu e de
mais
ninguém,
“apagando”
sua
“personalidade”
para que
outrem
seja
beneficiado.
Naturalmente,
quando
nos
referimos
à doação
da
própria
vida,
trata-se
de uma
dedicação
e de um
esforço
hercúleo
do
agente,
esquecendo
suas
necessidades
e
carências,
visando
ao bem
de
outrem.
Assim,
isto nos
leva a
crer que
o
devotamento
é uma
condição
e um
fator
predisponente
para o
surgimento
da
abnegação,
mas, uma
vez
gerada,
ela se
diferencia
daquele,
embora
mantendo
alguns
elementos
comuns.
Talvez
seja
devido a
esta
diferença
que
Kardec
tenha
colocado
a
abnegação
antecedendo
ao
devotamento,
sem
dúvida
não com
a
intenção
de
diminuir
a
importância
deste,
mas para
marcar
com mais
força a
diferença
qualitativa
existente
entre
estas
virtudes.
Consequentemente,
parece-nos
que a
terceira
opção é
a mais
adequada,
pois
existe
apenas
uma
relação
de
identidade
parcial
devido à
comunidade
de
algumas
características.
[iii] http://www.oconsolador.com.br/ano9/418/ivomar_costa.html
[iv] http://www.oconsolador.com.br/ano9/409/ivomar_costa.html
[v] Kardec, Allan. Revista Espírita. Março de 1869. P. 48 – Apóstolos do Espiritismo na Espanha. Edição Eletrônica.