Apólogo do fim da guerra
O escritor Humberto de
Campos teve publicado em
seu livro Mealheiro
de Agripa, de 1921,
um apólogo em que,
referindo-se à
recém-terminada primeira
guerra mundial
(1914-1918), traça o
perfil comportamental
dos vencedores (Homem
Bom) em relação aos
perdedores (Homem Mau).
Por questão de
fidelidade à ideia, que
nos traz importante
reflexão moral,
transcrevo o breve texto
para que nada se perca.
“Em uma estrada
deserta, encontraram-se,
um dia, dois
transeuntes, o Homem Bom
e o Homem Mau, que se
odiavam, e atracaram-se
em formidável combate
corporal.
– Que pretendes de
mim? – indagou, afinal,
o Homem Mau,
libertando-se dos braços
de ferro do adversário.
– Quero que te
confesses vencido, e
que, confirmando a tua
derrota, me entregues as
tuas armas.
– Se eu tas entregar,
consentes que eu
continue o meu caminho?
– Consinto.
– Então, aqui as
tens.
E entregou-lhe o punhal
e o revólver, as armas
que trazia. Mal, porém,
tentara afastar-se, o
Homem Bom o conteve,
segurando-o pela gola.
–Que queres mais?
Deixa-me!
– Deixar-te? És tolo!
Exijo que me dês o teu
ouro, para reparar os
danos que me causaste na
luta.
- Leva-o! – disse,
passando-lhe a bolsa.
E ia continuar a viagem,
quando o outro, ainda
uma vez, o deteve:
– Agora, dá-me a tua
roupa!
– Toma-a!
– E os teus sapatos!
Só então, desarmado,
descalço e nu, o Homem
Bom deixou, afinal, que
o Homem Mau continuasse
o seu caminho.
E se assim aconteceu
nesse caso, que seria do
mundo, hoje, se o Homem
Mau tivesse vencido o
Homem Bom?”
Um século se passou após
Humberto de Campos ter
escrito essa narrativa
sobre o conflito que
envolveu inúmeros
países. Podemos dizer,
sob o ponto de vista
exclusivamente moral,
que o homem realizou
algum avanço? Se as
guerras – e por
extensão, as misérias
humanas –continuam no
planeta, podemos deduzir
que o tratamento dos
“vitoriosos” sobre os
derrotados não mudou, já
que as causas das
guerras são sempre as
mesmas, tendo como fundo
a ambição, o egoísmo e o
orgulho dos homens.
Em outro escrito sobre o
mesmo assunto, no mesmo
livro, Humberto de
Campos fala de um “documento
imposto à assinatura da
Alemanha que é a
negação absoluta,
completa, geral, dos
sentimentos generosos e
idealistas dos povos
vencedores”. Nele, o
que pedem as nações
vitoriosas “à inimiga
aniquilada”?Indenizações,
navios, territórios,
colônias... “Reivindicações
justas, talvez
–argumenta Humberto –,mas,
em todo caso, maculadas
pela ambição, pela
vingança, pelo
interesse”.
Isso nos leva a pensar
profundamente em como
seria o mundo se os que
se acham bons
praticassem o bem
verdadeiramente, sem
dissimulação, sem
fingimento.