Macaco Simão
Carregando o
peso dos seus
oitenta e oito
anos, dos quais
setenta e nove
vividos na dura
faina da roça,
Simão, um negro
robusto, o mais
antigo morador
da Fazenda
Oiteira, depois
de um dia
estafante,
retornava do
trabalho a
passos lentos,
levantando o pó
do chão, num
penoso arrastar
de pés.
No aconchego do
lar, cercado do
carinho de sua
Maria – pensava
feliz – acharia
novas forças
para enfrentar
as labutas do
dia seguinte.
Antes, porém,
que alcançasse
sua choupana,
encontrou
Matias, neto dos
atuais patrões,
um garoto de
doze anos,
inconveniente e
atrevido, que,
maldosamente, só
o tratava por
Macaco Simão.
Insolente, o
petiz não perdeu
a oportunidade
de zombar do
pobre ancião,
cantarolando:
– “Meio dia,
panela no fogo,
barriga vazia.
Macaco torrado
que vem da Bahia
Fazendo caretas
pra Dona Maria”.
Simão
descontrolou-se,
aguentara
silencioso todos
os insultos, mas
não suportava
ver sua Maria
incluída nas
troças do
irreverente
guri. Revidou:
– Menino
arreliento,
quando você
morrer vai pras
profundezas do
inferno de
cabeça pra
baixo. E eu vou
achar graça.
– Macaco Simão –
chasqueou Matias
– o inferno foi
feito para os
negros sujos
como você e sua
mulher.
De pouco valeram
os apelos de
muita paciência
e as palavras de
conforto de Dona
Maria.
Simão estava
injuriado, pouco
se alimentou e,
logo depois,
saiu.
Sentado na
margem do açude
grande, seu
lugar predileto
para meditar e
orar, deu vazão
à tristeza. Em
pranto convulso,
perguntava:
– Por que, meu
Deus, tanta
maldade no
coração daquele
fedelho? Que
fazer para
corrigi-lo?
Pensamento
solto, volveu
aos tempos de
criança, quando
chegou à
fazenda.
Conhecera os
bisavós de
Matias, pessoas
austeras e
exigentes,
contudo, justas;
não detratavam
os empregados
quer fossem
brancos, mulatos
ou negros. Os
avós e os pais
haviam seguido a
mesma linha de
conduta, sérios,
compenetrados,
mas
respeitadores e
bondosos. Só o
Matias
escarnecia dele.
Morosamente o
sol declinava no
horizonte. O
velho Simão, em
oração, aos
poucos,
refazia-se do
desgosto.
Admirou o céu
tingido de
púrpura
anunciando o
final da tarde
morna, sentiu a
suave brisa
acariciar-lhe a
fronte
escaldante,
desejou voltar
aos cuidados de
Maria, porém o
sono
anestesiou-lhe
os sentidos,
pendeu a cabeça
sobre o peito,
dormiu
profundamente e
sonhou com um
anjo luminoso
convidando-o:
– Venha, Simão,
sossegue sua
alma tão
angustiada.
Muitos foram os
seus
sofrimentos,
grande será sua
recompensa.
– Meu bom anjo,
como posso
asserenar-me se
vejo o menino
Matias
inclinando-se
para o mal?
Desejo o seu
bem, sofro com o
seu descaminho.
– Hoje, Matias,
Espírito
endurecido, não
poderá ouvi-lo;
no futuro, você
terá como dar
sua ajuda direta
para salvar
aquela alma
rebelde. Agora,
repouse para um
despertar feliz.
Ao amanhecer,
encontraram o
corpo de Simão
hirto, olhar
sereno fixado no
infinito, tendo
nos lábios o
sorriso daqueles
que morrem em
paz.
Sessenta anos
passaram na
carruagem do
tempo.
Matias, sentado
à margem do
mesmo açude,
angustiava-se
pensando no
passado, no
presente e nas
sombrias
perspectivas do
futuro.
A Fazenda
Oiteira
viera-lhe
diretamente dos
avós.
Administrador
severo, fez-se
temido e
repudiado.
Juntou dinheiro,
mas não fez
amigos. Agora,
envelhecido,
vivia como
eremita,
malvisto,
rejeitado. Não
casou, não tinha
filhos. Quem
poderia
assisti-lo na
senectude?
Da angústia
passou ao
desespero. Quis
gritar, não
conseguiu. Dor
intensa
comprimiu-lhe o
peito, a visão
anuviou-se.
Morreu
blasfemando.
No dia seguinte,
acharam o
cadáver de
Matias, olhos
esbugalhados,
lábios
contraídos,
reflexo de uma
morte
atormentada.
Dez anos se
foram na
inexorável
marcha do tempo.
Matias, que
vagara em densas
trevas,
lentamente
despertou em
profunda
aflição, sem
decifrar o que
lhe acontecera.
Pressuroso,
demandou à casa
grande.
Constatou,
contrariado,
radicais
modificações. Na
entrada, um belo
e bem cuidado
jardim; no
interior,
recentemente
pintado, móveis
novos;
empregados
zelosos cuidavam
do asseio.
Aturdido,
retirou-se
procurando
informações.
Nenhuma
resposta,
fingiam não
escutá-lo.
Só então,
contrafeito,
pôde observar
que as antigas e
acanhadas casas
de barro batido
tinham sido
substituídas por
outras maiores,
mais
confortáveis, de
alvenaria. Viu
ainda uma
escola, uma
creche, um clube
recreativo. Tudo
feito com o seu
dinheiro, sem
autorização.
Verdadeira
espoliação dos
seus bens!
De repente,
lembrou-se de
suas
considerações à
beira do açude,
da sufocante dor
no peito, do
turvamento da
visão
acompanhado de
um longo vazio.
Certamente
morrera, era a
explicação.
Vencido pelo
desgosto, chorou
amargamente,
lamentou seu
infortúnio que,
reconhecia, só
podia imputar a
si próprio. Caiu
de joelhos e
orou:
– Se realmente
morri, se há
esse Deus que
todos têm como
Pai de infinita
misericórdia,
que eu seja
socorrido neste
momento de
inquietação e de
dúvidas atrozes.
Inimaginável é o
poder da prece.
Natalício, um
ser angelical,
abeirou-se de
Matias,
tocou-lhe de
leve o ombro,
falando com
ternura:
– Matias, que
você fez da
vida?
Desperdiçou uma
oportunidade de
crescer
espiritualmente!
Discriminou os
negros,
desconsiderou os
direitos dos
seus empregados,
cometeu uma
série de
equívocos.
– Bem sei que
mereço ir para o
inferno de
cabeça para
baixo. Mande-me
logo arder no
fogo. Cumpra a
justiça.
– Não, Matias,
você não irá.
Deus é bom e
misericordioso,
não permitirá
tal absurdo. Por
ser justo, Deus
concede sempre
novos ensejos de
redenção.
– Estou
confuso. Que
fazer então?
– Recomeçar –
retrucou
Natalício –
Outra vida
ser-lhe-á dada
se aceitar
reencarnar como
filho dos novos
donos da Oiteira
para retomar a
tarefa
abandonada por
negligência. À
noite, durante o
sono, promoverei
um encontro para
o entendimento
fraterno.
Aceita?
O carrilhão
soava anunciando
as vinte e três
horas quando
Matias,
acompanhado do
protetor,
penetrou na
alcova do jovem
casal que dormia
serenamente.
Ao chamamento de
Natalício, ambos
desprenderam-se
do corpo físico
indo ao encontro
dos visitantes.
– Muitos anos
atrás, acataram
de bom grado a
incumbência de
guiá-lo pelo
caminho reto do
dever. Deseja
conhecê-los
melhor?
– Sim, quero
muito saber qual
a ligação entre
nós que
justifique o
sacrifício de
receber-me como
filho –
respondeu
Matias, cheio de
curiosidade.
Como num passe
de mágica, o
guapo rapaz e
sua encantadora
esposa
transmudaram-se.
As peles alvas
tornaram-se
escuras, os
cabelos lisos
ficaram
encarapinhados;
eram dois idosos
vergados pelo
peso dos anos.
Trêmulo, incapaz
de suster-se em
pé, Matias
arrojou-se aos
pés dos pretos
velhos, gemendo
de assombro e de
dor:
– Macaco Simão,
Dona Maria! Como
podem aceitar-me
como filho? Não
mereço voltar
nem como
empregado. Sou
um pobre diabo
indigno de ser
olhado. Perdoem
este infeliz.
Emocionado até
as lágrimas,
Simão replicou:
– Levante-se,
Matias, há muito
tempo você foi
perdoado. Venha,
abrace-nos como
irmãos queridos,
esqueçamos o
passado, olhemos
o futuro
promissor.
Mais cinco anos
transcorreram.
Eliseu e Marina
contemplam
embevecidos o
filho
recém-nascido
como um presente
descido do céu.