CINEMA
Partida e
chegada.
E o
desafio Tornatore
A
temática
espírita
esplendidamente
colocada nas
telas da arte do
real por um
profissional
reconhecido pela
crítica
A sala estava em
silenciosa
expectativa.
Meus alunos de
Teoria da Imagem
deveriam
resolver dois
mistérios:
primeiro, como
assistir com
atenção a um
filme que se
passa a maior
parte do tempo
num quadrilátero
diminuto, e,
segundo, qual é
o discurso final
do filme, a
partir da
localização do
fator
intencional do
conhecido
diretor Giuseppe
Tornatore.
“Uma Simples
Formalidade” tem
sido um filme
desafiador há
mais de vinte
anos. Diminuta
porcentagem
daqueles que o
assistem
consegue atinar
com os
propósitos do
autor e com a
realidade que
apresenta. Todos
concordam que se
trata de uma
excelente
produção daquele
que é
considerado um
dos grandes
cineastas
italianos da
atualidade;
ninguém duvida
de que os dois
principais
protagonistas da
história –
Gérard Depardieu
e Roman Polanski
– têm um
desempenho
extraordinário.
Mas o filme não
foi sucesso
comercial e
costuma não
aparecer entre
os mais
destacados de
Tornatore.
De fato,
trata-se de um
filme
inapropriado
para consumo de
massa e, talvez
por isso, os
espíritas não
tenham se
interessado por
ele como podiam
e deveriam, pois
Tornatore faz um
filme
doutrinário sem
dar na pinta, e
o faz com
maestria, arte e
imagens.
Os críticos e
admiradores da
arte do real
produziram
muitos textos
sobre o filme de
Tornatore, mas
são na maioria
inconclusivos,
alguns
lindamente
ordenados, com
abordagens
psicológicas
profundas, mas
sem chegar a
lugar algum,
porque para
chegar onde o
autor pretendia
seria preciso
adotar, até
mesmo por ética
intelectual, uma
ideia que não é
apreciada pelo
mundo acadêmico:
pertence ao
mundo do
sagrado.
Entremos no
filme: estamos
numa delegacia
de algum lugar
isolado da
Itália. Velha,
suja, com
pessoas
estranhas.
Frente a frente
surgem o
delegado, durão
e o tempo quase
todo irônico, e
um escritor,
suspeito de
assassinato. O
papel do
delegado é fazer
o escritor
confessar o
crime e o do
suspeito é
negar, negar,
negar até...
Muitos elementos
simbólicos estão
presentes na
imagem e a
maioria deles,
quando
identificada, só
o é depois que o
filme acaba; às
vezes – e não
poucas –, mesmo
depois do fim o
espectador sai
sem perceber sua
presença e seu
significado
específico.
Ignorados,
desconhecidos,
esses símbolos
acabam remetendo
ao lugar comum
do suspense, da
simples trama
policial,
escondendo os
sentidos e os
fins pelos quais
foram ali
colocados.
Vejamos alguns:
1.
Chuva
–permanente e
torrencial, seu
barulho é uma
espécie de
índice da
necessidade de
confessar,
aceitar e
assumir o crime
cometido. Quando
isso se
concretiza, a
chuva cessa
imediatamente e
o novo dia
nasce.
2.
Delegacia –
tudo ali é sinal
de conturbação.
A mente do
acusado está
confusa como o
lugar onde se
encontra: chove
lá fora, dentro
também por conta
de inúmeras
goteiras, que na
verdade são
buracos na mente
por onde passam
frações de
lembranças dos
fatos recentes.
A delegacia é o
espelho de uma
consciência
perturbada.
3.
Máquina de
escrever – o
depoimento
infindável do
acusado é
registrado no
papel pelo
escrevente. O
barulho das
teclas e do
carrinho da
máquina no seu
vai e vem
apressado está
avisando que a
memória pode
liberar a
informação que
está sendo
exigida pelo
delegado.
4.
Papel
– as folhas de
papel são
substituídas na
máquina de
escrever numa
sucessão
contínua, mas
elas permanecem
em branco, assim
como a memória
do acusado. Elas
são como um
aviso do vazio a
ser preenchido
pelo escritor em
apuros.
5.
Delegado –
símbolo social
da segurança,
está ali não
como condutor de
um inquérito
simplesmente,
mas como um
magistrado que
sabe por
antecipação da
culpa do acusado
e cujo veredito
está pronto. É
preciso, no
entanto, levar o
acusado à
confissão, pois
só a partir dela
ele poderá ser
compreendido.
6.
Vinho
– símbolo de
vida (o
Espiritismo
tomou a cepa
como ícone)–
surge aos olhos
do acusado que o
sorve aos goles
frenéticos. A
seiva da uva age
para diminuir as
resistências
conscienciais do
acusado. Sendo
simbólico, não é
concreto, mas
imaginário. Logo
desaparecerá
junto com os
demais símbolos.
7.
Inundação –
no clímax da
negação pelo
acusado a chuva
aumenta e os
baldes,
espalhados pelos
diversos
compartimentos
da delegacia,
são
insuficientes
para coletar a
água das
goteiras. É
preciso tirar a
água de dentro
antes que tudo
se alague, como
quem retira da
consciência o
remorso e a dor
resultantes do
crime.
8.
Onoff
– esse é o nome
do escritor. Seu
simbolismo é
evidente e
denuncia a
intenção de
Tornatore.
Ligado/desligado,
significa vida e
morte. O
escritor está
vivo, mas já
morreu sem, no
entanto, ter
perdido a vida.
Quando foi preso
ele estava On,
vivo, mas queria
estar Off,
morto, por isso
corria, sempre
para frente,
como quem foge
de On ou como
quem quer se
afastar das
lembranças
perturbadoras
dos últimos
acontecimentos.
A dupla função
de delegado e
juiz atribuída
por Tornatore ao
personagem de
Polanski fica
clara na forma
pela qual ele
conduz o
depoimento de
Onoff. Ele tem
ciência dos
acontecimentos e
de tudo o que
diz respeito à
vida e à obra do
Onoff, conhece
de memória os
livros que este
escreveu e pode
reproduzir nos
mínimos detalhes
cada um. De
posse desse
arsenal, cerca
de todos os
lados o depoente
para não
deixá-lo dormir
nem escapar de
si mesmo e,
enfim, levá-lo a
assumir o crime.
Onoff se recusa
a acessar a
memória e deixar
subir à tona os
fatos ali
arquivados, mas
o delegado
coloca-os diante
dele na forma de
centenas de
imagens que o
perturbam. Pouco
antes, ao olhar
pela janela,
Onoff as havia
visto chegar em
um saco imenso,
mas confundiu o
conteúdo do saco
com o de um
corpo,
possivelmente o
de sua vítima.
Tomando de
algumas dessas
fotos
lembranças,
Onoff se
desarma, perde
as resistências,
cede.
Aos poucos,
clareia o dia,
cessa a chuva, a
delegacia e os
seus ocupantes
entram num
momento de
sensível
calmaria. Onoff
está arrasado e
ao mesmo tempo
consciente de
ter cometido o
suicídio. É hora
de ir; agora é
ele que não quer
deixar para trás
as lembranças;
insiste em
levá-las
consigo. O lugar
que o aguarda
não é uma cadeia
ou presídio de
segurança
máxima; talvez
uma clínica
psicológica.
Antes, porém, de
deixar a
delegacia, uma
surpresa: um
novo acusado ali
aparece em
situação
semelhante à
qual ele chegou.
Curioso, toma
conhecimento de
que todos os que
lá trabalham, o
delegado,
inclusive,
chegaram ali da
mesma forma e
pelo mesmo
motivo:o
suicídio.
Onoff segue em
frente; agora é
tão somente On.
E o desafio
Tornatore se
explica: fez ele
sua
interpretação
espiritual dos
suicidas e de
sua chegada ao
além após
colocarem fim em
seus corpos
físicos. Sob a
capa de uma
perturbação
mental de fuga
da realidade,
escondem e se
escondem da
verdade, mas
precisam dela
para se livrarem
da tormenta que
os aflige. E
quando a
enfrentam,
depois de
encurralados,
acordam mais
leves diante da
possibilidade de
um outro
recomeço.
PS – Filme para
ser visto em
tela grande ou,
em casa, em DVD.
Mas está também
disponível pelo
Youtube em:
https://www.youtube.com/watch?v=IYelkG2pkdc
Visite, quando
puder, o blog www.expedienteonline.com.br