Tão perto, tão
longe
O poeta falava
ao jornalista
sobre seu
assunto mais
íntimo: a
poesia.
Tornara-se a
pouco imortal,
quase ao mesmo
tempo em que a
matéria frágil
lhe anunciara
seus oitenta
anos de perfeita
destrutibilidade.
O jornalista
matreiro e
experiente
esquenta a
conversa,
recordando: você
não acredita em
nada além da
vida, não é?
Sorrindo um riso
quase natural,
espontâneo, o
poeta
recém-empossado
na Academia
Brasileira de
Letras reflete
brevemente e
confirma: não,
não acredito;
até gostaria de
crer, dizem que
é melhor
acreditar do que
não acreditar,
mas eu não
consigo mesmo.
Aqui se aplica
bem a frase de
Vinícius: “que
seja imortal
enquanto dure”.
Alguns minutos
antes, o poeta
revelara o seu
processo de
composição
poética e
deixara no ar
uma interrogação
a respeito das
ideias, dos
temas e mesmo
das motivações
para compor suas
consagradas
obras. Tudo
vinha
simplesmente,
sem planejamento
prévio. Eu não
planejei a minha
vida, nada, tudo
veio
naturalmente,
diz. O
jornalista
contrapõe,
então: mas a
inspiração
depende muito da
transpiração,
não é? Sim,
afirma o poeta,
mas eu não faço
muito esforço,
não. Claro, cabe
a mim dar o tom,
o estilo,
apurar,
trabalhar o
texto. As coisas
chegam e acho
que esse é o
caso, porque a
pessoa não é
poeta, escritor
etc. se não
nasceu com o
dom. Não adianta
querer ser uma
coisa se o dom
não está
presente, se ele
não nasceu com
aquilo. O poeta
fala de algo que
para ele está no
DNA, com a
certeza de todas
as certezas,
porque é isso
que o alimenta,
é nisso que
acredita.
O ser humano é
um ser limite.
Não digo
limitado,
apenas, mas digo
que vive na
fronteira da
vida e da morte,
do espírito e da
matéria e de
forma geral não
tem a percepção
clara disso.
Está sempre
esbarrando num e
noutro lado da
fronteira, muito
próximo do crer
e do não crer,
quase a
descobrir o que
um e outro lado
apresentam, sem,
contudo,
ultrapassar a
linha tênue que
separa a matéria
do espírito. Ele
não é nem
completamente um
corpo, nem
completamente um
espírito. Isso
vale tanto para
o homem
material, feito
o poeta a crer
no fim, na
extinção total
da vida ou
término do
ciclo, como vale
também para
o homem
espiritual, que
crê na
continuidade, no
depois, mas está
sempre
esbarrando nas
dúvidas da vida
material.
Não me agrada a
ideia da
existência de
alguém que não
crê; penso que o
ser humano é
aquele que crê
sempre em alguma
coisa, e, por
crer, age,
sonha, pensa,
descortina. O
poeta que revela
sua incapacidade
de crer em algo
após a morte, na
verdade, crê na
inutilidade da
vida, na sua
finitude total.
Crê na
imortalidade
apenas da
duração, daquilo
que é válido
viver, mas sem a
perspectiva da
repetição, do
renascimento ou
da permanência
para além do
limite da vida
material. O
futuro nele está
sempre
pressionado pela
morte e só é
válido pensar
neste futuro até
o horizonte
próximo, após o
qual não há nada
mais.
Algo não muito
diferente se
passa com o
homem
espiritualista
que acredita na
continuidade e
no retorno, mas
vive pressionado
pelos conflitos
do viver no
corpo e anseia
sempre colocar
os pés no outro
lado da
fronteira, antes
mesmo de
completar a
experiência do
próprio corpo.
Sua dúvida maior
está em como
viver na matéria
sem perder a
essência do
espírito, o que
o coloca na
condição de não
viver
completamente,
nem a
perspectiva do
espírito nem a
do corpo.
Nessa
fronteira-limite
os dois se
esbarram sem
perceber, e
esbarram
permanentemente,
porque o homem
de Herculano não
é o homem-corpo,
mas o
homem-espírito,
apesar de seus
quereres e de
suas negações. A
inspiração do
poeta é uma
realidade, mas
parte
considerável de
sua origem, de
sua fonte – esta
relação
comunicativa
misteriosa, a
envolver os de
cá e os de lá –,
para o
poeta-corpo, só
alcança quem
nasceu com o dom
de ser poeta,
escritor,
dramaturgo, mas,
na verdade,
alcança a todos,
em todas as
áreas, onde a
criação esteja
sendo exercida
por qualquer
forma de arte,
ou onde a vida
humana
consome-se no
existente.
Dois humanos
vivem na
inspiração, da
inspiração, com
a inspiração.
Não penso apenas
em dois humanos
distantes, um
aqui, outro
além; penso,
também, em dois
humanos
visíveis,
táteis, que
estão ou não
lado a lado, mas
que habitam o
mundo do
pensamento e não
apenas o do DNA.
Porque o seu
amigo do lado,
que o abraça e
dá bom-dia é
fonte de
inspiração;
porque o seu
olhar capta as
imagens da
tristeza, sem
perceber que
forças o movem
para que se
dirija para o
lado onde a
tristeza se
derrama. A sua
inspiração o
leva a criar, e
a criação o faz
transformar a
tristeza em
possibilidade de
alegria, sonhos,
desejos,
esperanças. Você
vive ali,
naquela
fronteira-limite,
tão perto e tão
longe; perto
demais para
perceber; longe
demais para se
apropriar. A
matéria e o
espírito
escorregam entre
nossos dedos, no
líquido fluído
das ideias:
vivemos no corpo
buscando o
imaterial, ou
vivemos no
imaterial
desejando o
corpo. O
conflito é a
nossa
inconstância
diária. Não
sabemos ainda, não
encontramos a
segurança do
corpo que abraça
o espírito, nem
do espírito que
abraça o corpo.
A
fronteira-limite
é ainda o nosso
mistério.
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