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Ano 10 - N° 467 - 29 de Maio de 2016

LEONARDO MARMO MOREIRA
leonardomarmo@gmail.com 
São João Del Rei, MG (Brasil)

 
 

Leonardo Marmo Moreira

Ernest Renan e a relevân-cia do seu legado à luz do pensamento espírita

Ao contrário do que muitos podem pensar, a humanização de Jesus torna seus seguidores mais determinados na transformação evangélica de si mesmos, pois leva tais discípulos a serem mais maduros e conscientes. A “divinização de Jesus”, pelo contrário, faz do Mestre um exemplo inalcançável e, portanto, torna seus ensinos “menos praticáveis”, pois inerentes à vida de um “deus” (com “d” minúsculo) ou do próprio “Deus” (com “D” maiúsculo). Assim sendo, a aceitação desse “Jesus mitológico” abre precedentes para outras concepções igualmente mitológicas a respeito da vida e do legado do Mestre, assim como de discípulos, apóstolos, familiares e seguidores de Jesus. Tal abordagem nivela a discussão religiosa “por baixo”, limitando os esforços de crescimento da compreensão da questão espiritual da vida. Realmente, a “absolvição mágica de pecados sem nenhuma reforma íntima”; o “Céu” fácil, sectário e claramente discriminatório; as questões associadas à suposta virgindade de Maria e a visão mística e/ou mítica criada sobre o admirável Espírito que foi mãe de Jesus na Terra; a condenação a um inferno eterno, entre outros tópicos, são propostas incompreensíveis sob quaisquer aspectos filosófico-religiosos, mas, apesar de serem ideias esdrúxulas, acabam sendo admitidas como verdadeiras, a partir da aceitação de premissas equivocadas. 

Ernest Renan foi contemporâneo de Kardec 

A análise supracitada remete-nos, indiretamente, ao próprio Mestre Nazareno que dissera: “Ninguém põe remendo de pano novo em vestido velho”. Ou seja, ideias corretas em uma “amarração” conceitual com propostas erradas tendem a gerar inúmeras inferências igualmente equivocadas. Também faz-nos lembrar de Erasto em “O Livro dos Médiuns” que ensinou ser “preferível rejeitar 10 verdades a aceitar uma única mentira, uma única doutrina falsa”. Portanto, a aceitação de ideias básicas deturpadas favorece a aceitação de ideias subsequentes também erradas, pois dá margem a um raciocínio ilógico (mesmo que, em alguns aspectos, possa ter aparência de lógico), o que pode ser facilmente identificado nos estudos sobre o silogismo aristotélico. Ou, por outro lado, a admissão de propostas claramente ilógicas favorece uma outra proposição muito comum em nossa sociedade de que, em matéria de questões religiosas, “tudo é ilógico”, gerando a famosa e irracional resposta “isso é um mistério” ou “são mistérios de Deus, e não adianta tentar entender”.

Tais tipos de conclusões limitam a troca séria e produtiva de ideias sobre as questões espirituais, favorecendo um tipo de separação absoluta entre religião e ciência, a qual, até certo ponto, resiste em nossa sociedade nos dias atuais, em que pese a contribuição decisiva do Espiritismo, verdadeira “aliança entre ciência e religião”.

A discussão acima reforça o valor da contribuição de Ernest Renan ao crescimento religioso da humanidade. De fato, ao questionar duramente análises irracionais a respeito de Jesus e de seus Evangelhos, Renan favoreceu um amplo debate sobre questões antes muito pouco analisadas. Isso porque somente através de uma fé verdadeiramente raciocinada equacionaremos uma série de problemas presentes na cultura religiosa em nosso planeta.

Ernest Renan foi um escritor, filósofo, teólogo e historiador francês que se tornou uma grande referência no pensamento cultural do mundo a partir do século XIX. Nascido em Tréguier em 28 de fevereiro de 1823, Renan viveu fisicamente até 2 de outubro de 1892, quando desencarnou em Paris aos 69 anos. Renan contribuiu significativamente para a busca de uma análise racional das questões religiosas, enfocando, sobretudo, o cristianismo.

Joseph Ernest Renan foi um autor tão marcante no seu tempo que, contemporâneo de Allan Kardec, motivou grande interesse do próprio Codificador a respeito de sua obra “Vida de Jesus”, a ponto de Allan Kardec interrogar os Espíritos da Falange do Espírito de Verdade a respeito do valor real da respectiva obra. Tal questionamento está inserto no livro kardequiano “Obras Póstumas”.  

Como Erasto definiu o livro de Renan sobre Jesus 

Vejamos o que Kardec perguntou e o que Erasto, o responsável pela resposta, esclareceu (Obras Póstumas - tradução de João Teixeira de Paula e Introdução e Notas de J. Herculano Pires - décima segunda edição da LAKE, 1998.):
 

P. (A Erasto) Qual é o efeito que produzirá a “Vida de Jesus” de Renan?

R. Será imenso. Grande será o rumor no seio do clero, porque esse livro lança por terra os fundamentos do edifício, em que ele se abriga há dezoito séculos. O livro não é irrepreensível; ao contrário, oferece larga margem à crítica, por ser o reflexo de uma opinião exclusiva, que se circunscreve a um estreito círculo da vida material.

Renan não é materialista, mas pertence à escola, que não nega o princípio espiritual, mas não lhe atribui função efetiva e direta nas coisas do mundo. Ele é destes cegos inteligentes que explicam a seu modo o que não podem ver; que, não compreendendo o mecanismo da vista a distância, imaginam que se não pode conhecer uma coisa senão tocando-a. Por isso, reduziu ele o Cristo às proporções do homem mais vulgar, negando-lhe todas as faculdades, que são os atributos do Espírito livre e independente da matéria. Entretanto, de par com erros capitais, principalmente no que toca à espiritualidade, aquele livro contém observações muito justas, que tinham até agora escapado aos comentadores e que lhe dão alto relevo sob certos aspectos.

O autor pertence à legião dos Espíritos encarnados que podem ser chamados demolidores do velho mundo e cuja missão é nivelar o terreno, em que se edificará novo mundo mais racional. Quis Deus que um escritor de grande fama viesse, com o seu talento, lançar a luz sobre certas questões obscuras e envoltas em preconceitos seculares, a fim de predispor os Espíritos para as novas crenças. Sem querer, Renan aplainou os caminhos para o Espiritismo. (Grifos meus.) 

Nota de J. Herculano Pires (Revisor da tradução): “A evolução se realiza através de uma engrenagem de ações e reações combinadas. A obra de Renan, não somente nesse livro, representou um esforço paralelo ao Espiritismo, no campo religioso, contribuindo poderosamente para arejar o clima mental da época”. (Grifos meus.) 

Renan: um cego inteligente? 

Conforme registrado em “Obras Póstumas”, os Espíritos opinam que Renan seria uma espécie de “cego inteligente” e que a sua contribuição, indiretamente, auxiliaria o Espiritismo, através de significativa contribuição na “demolição do velho mundo” para favorecer as condições de uma reconstrução de valores culturais relacionados à área religiosa.

A explicação de um dos grandes colaboradores da “Falange do Espírito de Verdade”, tal como Erasto, a Allan Kardec faz-nos lembrar, indiretamente, o célebre ensinamento do Mestre Jesus: “Aqueles que não estão contra nós estão por nós”.

De acordo com os Mentores orientadores de Allan Kardec, Renan era um Espírito inteligente que elaborou uma obra inteligente e interessante, mas com várias ressalvas. De qualquer maneira, segundo os Espíritos, entre pontos positivos e pontos negativos, o saldo dessa obra seria altamente favorável ao estudioso francês. De fato, em vários assuntos associados direta ou indiretamente ao Espiritismo, identificamos a contribuição de estudiosos não espíritas, os quais pesquisando questões espirituais têm muitas vezes corroborado as conclusões espíritas.

A ideia de “cego inteligente” sugere alguém que tem muita dificuldade de perceber alguns tipos de evidências, mas que, apesar dessas limitações, teria uma grande capacidade de análise racional de alguns ângulos da questão. Realmente, tal análise parece ser bastante adequada quando estudamos Renan e seu livro mais famoso “Vida de Jesus”.

Renan desenvolveu uma análise racional bastante objetiva sobre os textos evangélicos. Ele literalmente “humanizou” Jesus, rejeitando sua suposta “divindade”, como, inclusive, o dogma católico da “Santíssima Trindade” defende. Com uma ampla capacidade de análise crítica, defende que “Jesus de Nazaré” era “um homem incomparável”, valorizando o papel educador de Jesus na história da humanidade. Essa valorização era uma análise independente de rótulos e das conceituações religiosas tradicionais, tanto que diferencia drasticamente “Jesus de Nazaré” do mito divinizado que seria o “Jesus de Belém” (vide a obra “Revisão do Cristianismo” de J. Herculano Pires).

Ernest Renan, que havia sido nomeado professor de hebraico no Collège de France, teve seu curso suspenso pelo governo de Napoleão III após sua primeira aula, justamente por ter chamado Jesus de “homem incomparável”. O curso foi, de fato, suprimido até 1870. 

Renan e sua rejeição aos fenômenos “paranormais” 

Apesar de elaborar uma obra em que é possível perceber uma boa cota de opiniões pessoais, que poderiam ser questionadas por estudiosos de várias correntes e também por livres pensadores, Renan contribui para o crescimento cultural da humanidade ao propor uma análise crítica realmente racional sobre os textos evangélicos, assim como a obra e o legado de Jesus de Nazaré, mesmo considerando que podemos discordar de muitos de seus posicionamentos à luz da Doutrina Espírita.

Renan rejeitava praticamente todo episódio (ou pelo menos as interpretações “supranormais” dos respectivos episódios) que narrava alguma experiência de caráter dito “paranormal” atribuído a Jesus. Portanto, ignorou toda e qualquer possibilidade de fenomenologia mediúnica e/ou de emancipação da alma e, consequentemente, das chamadas “curas espirituais”. Ignorando a possibilidade da comunicabilidade da alma e da influência dos magnetismos humano e espiritual sobre a saúde humana, Renan rejeita a ideia de paranormalidade, por estar longe do conhecimento dos pré-requisitos que viabilizam uma interpretação racional de tais fenômenos. Realmente, a compreensão, por exemplo, da realidade do perispírito era algo muito distante dos conhecimentos de Renan, o que favorecia uma interpretação “simplista” dos textos evangélicos.

Apesar de seus equívocos à luz da Doutrina Espírita, a rejeição aos dogmas, sobretudo à ideia da “Santíssima Trindade”, com a consequente “humanização” de Jesus, não deixa de ser uma importantíssima contribuição para que muitos estudiosos fossem motivados a uma busca mais racional e profunda da vida e da obra do Mestre de Nazaré. De fato, a ideia básica de rejeição ao “milagre” coaduna com o pensamento espírita. A diferença está no fato de que o Espiritismo estuda a “comunicabilidade com os Espíritos” como fenômeno natural, e dá inúmeras e contundentes evidências da realidade desse tipo de comunicação. Tais informações estavam, àquela época, muito longe do horizonte cultural de Ernest Renan.

De qualquer forma, a atitude de estudo crítico constante por parte de Renan perante as questões religiosas induz a sociedade a refletir sobre o significado da verdadeira religiosidade e os problemas intrínsecos a análises literais focadas nos chamados “textos sagrados”. Esses dois itens serão sempre importantes para o amadurecimento do Espírito imortal. Importantes autores espíritas, tais como J. Herculano Pires, principalmente através de sua excelente obra “Revisão do Cristianismo”, e Hermínio Miranda, estudaram Renan com muita atenção percebendo o valor da contribuição desse escritor francês, em que pesem seus eventuais equívocos à luz do Espiritismo. Vale citar igualmente Divaldo Franco que elaborou interessantes seminários e palestras baseados na análise do pensamento de Renan à luz da Doutrina Espírita. 

Jesus teria sido realmente tentado por Satanás? 

Realmente, se Jesus também é Deus, e um Deus que supostamente (na opinião de católicos e protestantes) pode ser tentado pelo “Diabo” e titubeia ante a provação, como supostamente teria ocorrido no Jardim das Oliveiras (também de acordo com a opinião de católicos e protestantes), tudo ou quase tudo pode ser admitido, pois as premissas supracitadas, previamente admitidas, são contraditórias, ilógicas e totalmente incoerentes com o mínimo bom senso, abrindo caminho para outras ideias igualmente absurdas. Seria o caso de se questionar: quem governava o Universo (admitindo que Jesus seria também Deus), quando Jesus era tentado e/ou quando ele titubeava antes das provações de sua tarefa?!

Se como espíritas, que não admitimos que Jesus seja Deus, é inaceitável que Jesus tenha sido efetivamente tentado assim como hesitado frente à tarefa que veio cumprir na Terra, não seria ainda mais incoerente admitir tais hipóteses para aqueles que o consideram (inexplicavelmente) Deus?!

Ao admitir tais proposições, as questões religiosas passam a trilhar caminhos de uma “fé não raciocinada” ou, pelo menos, sem qualquer sustentação racional logicamente aceitável. Dentro desse contexto, qualquer proposta, por mais insustentável que possa parecer, pode ser admitida por religiosos que não buscam cultivar uma fé “que possa encarar face a face a razão em todas as épocas da humanidade”, conforme a diretriz espírita apregoa como ideal.

Essa noção comum de religião sem lógica, quando levada a graus extremos de fanatismo e de incoerência, tem dado, tanto no passado como no presente, exemplos terrivelmente tristes de quão prejudicial pode ser o ideal religioso sem critérios mínimos de ética e bom senso.

Mesmo desprezando a possibilidade de autenticidade de aspectos ditos “paranormais” da atuação de Jesus, as premissas racionais da reflexão de Renan já foram suficientes para gerar uma grande polêmica no século XIX (e até mesmo nos séculos XX e XXI). A polêmica, nesse caso, foi muito valiosa, uma vez que em “matéria de fé”, ainda mais naquele tempo, as questões religiosas, sobretudo aquelas relacionadas a Jesus, nem sequer podiam ser levantadas (em relação ao status quo associado à cultura do homem médio da época, o qual era mantido em um nível de racionalidade bem baixo devido, entre outros responsáveis, à atuação dos líderes religiosos do século XIX) e muito menos refutadas (pelo menos no que diz respeito aos conceitos tidos como “oficiais” pelas instituições religiosas dominantes, haja vista a famigerada “infalibilidade papal”, que seria “promulgada” no Concílio Vaticano I pelo papa Pio IX alguns anos depois, em 18 de julho de 1870).   



 


 
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