Ao fazermos uma
análise da
personalidade de
Kardec, buscando
conhecer-lhe a
cultura, aliada
à profunda
identificação
com o Evangelho,
não devemos ter
por objetivo
apenas
homenagear-lhe a
memória. Devemos
vê-lo como
alguém que veio
para cumprir uma
promessa de
Jesus. Devemos
avaliar-lhe a
estatura
espiritual, não
apenas para
nosso
encantamento,
mas a fim de nos
conscientizarmos
da nossa
condição de
beneficiários da
sua obra, desse
acervo imenso de
esclarecimentos
que marcaram
efetivamente uma
nova etapa na
evolução humana.
É necessário
pensarmos em
Kardec na sua
época, a fim de
avaliar-lhe o
avanço no tempo
em relação ao
pensamento
predominante de
então.
Precisaríamos,
todos nós, ter a
possibilidade de
nos transportar,
de caminhar para
o passado, a fim
de sentirmos a
época, com seus
costumes e,
principalmente,
com suas
limitações. Só
assim poderíamos
observar com
justeza o avanço
do pensamento de
Kardec em
relação aos seus
contemporâneos,
e até de muitos
dos atuais
pensadores das
searas
religiosas,
políticas e
sociais.
A Igreja,
recém-saída da
Inquisição – em
Portugal
terminou, por
decreto da
Regência, em
1821 –, ainda
impunha
terrivelmente o
seu poder. Nos
países, ditos
católicos, não
havia separação
entre o Estado e
a Igreja. Para
se ter ideia
desse poder, é
só lembrarmos
que em 9 de
outubro de 1861,
na Espanha,
foram queimadas,
em praça
pública, 300
obras espíritas,
legalmente
importadas da
França, no assim
chamado o
Auto-de-fé de
Barcelona.
Em 1864, a
encíclica
Quanta Cura
condenou a
tolerância
religiosa. E
esse empenho em
manter o poder
não se
restringiu ao
século XIX, pois
em 1906 duas
encíclicas do
Papa Pio X,
Vehementes nos
e Gravissimi
Officii,
condenaram a
separação entre
Estado e Igreja.
Na Espanha, em
1931, houve a
laicização do
poder civil, com
a limitação dos
poderes da
Igreja.
Infelizmente, em
1953, durante a
ditadura de
Franco, mediante
concordata com a
Santa Sé, voltou
o Catolicismo a
ser declarado
religião única
da nação
espanhola. Em
Portugal,
durante a
ditadura de
Salazar, em
pleno século XX,
foi fechada a
Federação
Espírita
Portuguesa, e
todos os seus
bens foram
confiscados. Na
França, o clima
era um tanto
diferente, mas
não muito.
Tenham-se em
vista as
perseguições e
os ataques
sofridos por
Kardec.
O descompasso
entre a religião
e a ciência
tornava-se cada
vez mais agudo
Entretanto,
apesar da forte
pressão
dominadora
exercida pela
Igreja, no
sentido de ser
mantida a sua
versão do
Cristianismo,
durante o século
XIX, em algumas
partes da Europa
ocorria uma
libertação quase
rebelde de
muitos
intelectuais, em
relação às
pregações
religiosas, que
já não mais
conseguiam
convencê-los. O
descompasso
entre a religião
e a ciência se
tornava cada vez
mais agudo,
ensejando um
desencanto que
levou muitos
Espíritos
lúcidos à tomada
de posições
eminentemente
materialistas,
criando o
ambiente para o
surgimento do
Positivismo,
doutrina que
visa à superação
dos estados
teológico e
metafísico,
negando tudo o
que não fosse
fisicamente
mensurável, e
preparando o
terreno para o
materialismo do
século XX.
No campo social,
a mensagem
religiosa servia
apenas para
coonestar o
egoísmo
vivenciado pelos
poderosos, sem
que houvesse a
mínima ação no
sentido de
amenizar a
desumana e
angustiosa
situação das
classes
trabalhadoras,
notadamente dos
operários. É
dessa época a
famosa frase
atribuída a Karl
Marx: “A
religião é o
ópio do povo.” E
realmente o era,
pois
constatava-se
facilmente a
imensa distância
que havia entre
a mensagem
simples,
fraterna,
amorosa e
atuante de
Jesus, e aquilo
que era
oferecido como
Cristianismo
pela Igreja,
totalmente
comprometida com
o poder
temporal.
Kardec não se
curva à Igreja,
mas não adere ao
materialismo
seco e
destrutivo, como
tantos
pensadores do
seu tempo. Sua
visão de
missionário
permite-lhe
discordar
daquilo que a
Igreja oferecia
como verdade e
possibilita-lhe
uma proposta
religiosa a ser
experienciada
principalmente
fora dos
templos. Uma
religião a ser
vivida em clima
de liberdade,
tanto na área do
sentimento,
quanto da razão,
conforme os
ensinamentos e
exemplos de
Jesus.
Diante da
atuação de
Kardec, seria
difícil
enquadrá-lo nas
áreas do
conhecimento
humano.
Revela-se como
teólogo ao
dialogar com os
Espíritos
Superiores a
respeito de
Deus,
demonstrando
independência e
superioridade de
pensamento em
relação aos seus
contemporâneos,
quando formula a
pergunta: “Que é
Deus?”
1
Isso dito numa
época em que
grandes
pensadores
estavam ainda
atrelados à
ideia de um Deus
antropomórfico,
portador de
limitações
humanas, quanto
à forma e aos
atributos.
A reencarnação,
rejeitada até
então,
mereceu-lhe
análise clara e
irretorquível
O Codificador
demonstra que
sua visão de
Deus é cósmica,
e está em
perfeita
consonância com
os avanços da
Astronomia, que,
caminhando à
frente das
religiões, já
demonstrara
àqueles “que têm
olhos de ver”
que o Universo
conhecido era
maior do que o
Deus ensinado
por elas.
Entretanto, sua
concepção
científica da
grandeza cósmica
de Deus não o
impediu de
resgatar a
figura do Pai
justo,
providente,
amoroso e
infinitamente
misericordioso,
conforme os
ensinamentos de
Jesus,
contrapondo-se
frontalmente à
criação nefasta
dos teólogos: o
Inferno de penas
eternas, dentro
do contexto
cristão. Nesse
campo, revela o
Codificador a
sua condição
também de
educador e de
penólogo, ao
examinar com
impecável
lucidez temas
como Céu,
Purgatório e
Inferno,
principalmente
na obra “O Céu e
o Inferno”.
Entretanto, se
abriu as portas
do Inferno,
demonstrou que
as do Céu não se
descerram à
custa de ofícios
religiosos
encomendados, de
legados post
mortem, mas
através do
esforço
individual,
intransferível e
consciente de
cada Espírito,
conforme
sentenciou
Jesus: “... Se
alguém quiser
vir após mim,
renuncie-se a si
mesmo, tome
sobre si a sua
cruz e siga-me.”
2
A reencarnação,
rejeitada e
ridicularizada
àquela época,
mereceu-lhe
análise clara,
profunda e
irretorquível,
em tese que o
futuro, que
vivemos hoje,
tem consagrado
como vitoriosa,
de vez que até o
presente não
existe nenhum
trabalho sério
que a conteste.
Pelo contrário,
com o passar do
tempo
avolumam-se os
trabalhos
acadêmicos que a
comprovam.
Demonstra com
clareza a
imortalidade da
alma, não apenas
como artigo de
fé, estribada em
dogmas, mas no
campo da
experimentação
científica,
através do
resgate do
exercício da
mediunidade,
prática que
seria objeto de
estudos levados
a efeito na área
acadêmica,
primeiramente
sob o nome de
Metapsíquica e,
bem mais tarde,
de
Parapsicologia.
Revelou-se
sociólogo
eminentemente
cristão ao
dialogar com os
Espíritos sobre
questões
sociais, pondo
em evidência
temas que outras
religiões só
décadas mais
tarde viriam
discutir.
O trabalho,
ensinado no meio
religioso como
castigo, é
mostrado como
oportunidade
enobrecedora de
colaboração na
obra de Deus.
Pela primeira
vez o
relacionamento
entre capital e
trabalho é
tratado no meio
religioso, com
sérias
advertências
àqueles que,
abusando do
poder de mando,
impõem excessivo
trabalho a seus
inferiores, pois
era comum na
Europa as
jornadas de
trabalho
excederem a doze
horas.
Kardec inseriu
conceitos de
moral religiosa
num campo
eminentemente
social
Pela primeira
vez, na história
do Cristianismo,
alguém cria
ambiente para
que Espíritos
Superiores
advirtam o
homem, em nome
de Deus, a
respeito da
responsabilidade
no emprego do
poder: “Todo
aquele que tem o
poder de mandar
é responsável
pelo excesso de
trabalho que
imponha a seus
inferiores,
porquanto, assim
fazendo,
transgride a lei
de Deus.”
3
Enquanto todas
as vozes
religiosas se
calavam, Kardec
inquire os
Espíritos a
respeito do
direito do
trabalhador de
repousar depois
de ter dado o
vigor de sua
juventude em
trabalho: “Mas o
que há de fazer
o velho que
precisa
trabalhar para
viver e não
pode?”
4
A resposta
lapidar, que
deveria servir
de epígrafe e
inspiração para
muitos discursos
sociológicos e
religiosos: “O
forte deve
trabalhar para o
fraco. Não tendo
este família, a
sociedade deve
fazer as vezes
desta. É a lei
de caridade.”
4
Só 31 anos
depois da edição
definitiva de “O
Livro dos
Espíritos”, a
encíclica
Rerum Novarum,
em l891, revela
algum
despertamento do
meio católico
para o tema.
Relativamente à
escravidão,
existente ainda
no Brasil, nos
Estados Unidos e
em Cuba, os
poderes
religiosos
também se
mantinham
calados até
então, impedidos
de erguer a
bandeira
abolicionista
por estarem
comprometidos
com aqueles que
se beneficiavam
com o trabalho
escravo. Contra
esse ignominioso
domínio de um
ser humano sobre
outro,
manifestaram-se
os Espíritos,
falando em nome
de Deus, graças
às perguntas de
Kardec, que, com
isso, inseriram
conceitos de
moral religiosa
num campo
eminentemente
social.
Nove anos antes
da publicação da
obra “Sujeição
das Mulheres”,
de Stuart Mill,
que é tida como
uma das molas
propulsoras do
movimento
feminista,
Kardec publica o
diálogo que
manteve com os
Espíritos
Superiores e
comentários
seus, analisando
a igualdade dos
direitos do
homem e da
mulher, enquanto
as demais
correntes
cristãs
mantinham, e
ainda mantêm em
seu próprio
seio, posições
altamente
discriminatórias,
em que a mulher
continua como
subalterna,
malgrado os
exemplos
dignificantes de
Jesus.
Ao perguntar aos
Espíritos: “Será
contrário à lei
da Natureza o
casamento, isto
é, a união
permanente de
dois seres?”
5,
o Codificador
demonstra
conceituar o
casamento como
ato
eminentemente
moral, mútuo
compromisso
assumido no
âmbito da
consciência de
um homem e de
uma mulher,
acima de toda e
qualquer bênção
sacerdotal ou da
assinatura de um
documento civil.
“A abolição do
casamento seria,
pois, regredir à
infância da
Humanidade”
Evidenciada por
Kardec há mais
de um século,
essa a visão que
se tem hoje,
quando cada vez
mais prospera o
entendimento de
que ninguém casa
ninguém; as
criaturas se
casam, e só elas
são responsáveis
pela manutenção
do vínculo
livremente
estabelecido. É
digna de nota a
posição do
Codificador,
pois se de um
lado esclarece,
libertando a
criatura dos
grilhões criados
por uma bênção
sacerdotal –
pretensamente
dada em nome de
Deus –, por
outro, chama-lhe
a atenção para
os compromissos
assumidos
perante o altar
de sua própria
consciência. O
valor que Kardec
atribui ao
casamento está
perfeitamente
explicitado no
comentário feito
ao tratar do
assunto: “A
abolição do
casamento seria,
pois, regredir à
infância da
Humanidade e
colocaria o
homem abaixo
mesmo de certos
animais que lhe
dão o exemplo de
uniões
constantes.”
6
Numa época em
que as religiões
não discutiam o
papel da
família, por
julgá-la
estabelecida em
função de
sacramento
ministrado em
nome de Deus –
embora, em
alguns casos,
até mesmo contra
a vontade de
quem o recebia
–, Kardec,
antevendo
atitudes e
questionamentos
futuros, analisa
e discute com os
Espíritos
Superiores o
papel do
instituto
familiar. Obteve
respostas
esclarecedoras
dos Espíritos,
situando a
família como
núcleo
insubstituível
da educação
humana, núcleo
formado não em
função de uma
evolução social,
mas decorrente
de desígnio
divino. Por
isso, o
Espiritismo já
tinha resposta
antecipada às
duras
contestações que
viriam décadas
mais tarde,
quando regimes
totalitários
pretenderam
instituir um
modelo de
educação da
criança pelo
Estado e, mais
tarde ainda,
através das
propostas de
“vida livre”
levadas a efeito
pelos hippies
e aqueles que
lhes partilharam
as ideias.
Ao assumir
veemente combate
contra a pena de
morte – enquanto
setores
religiosos se
mantinham
silenciosos ou
mesmo coniventes
–, Kardec tira o
“não matarás” de
dentro dos
templos,
levando-o à
discussão penal
e social,
antecipando-se,
em décadas, a
campanhas que
surgiriam bem
mais tarde.
O imenso abismo
cavado entre a
Ciência e a
Religião pelos
estudos de
Copérnico e
Galileu
alargou-se ainda
mais com a
publicação da
obra “Da Origem
das Espécies”,
de Charles
Darwin. Coube a
Kardec o papel
histórico de
construir uma
ponte luminosa,
ligando Ciência
e Religião.
O pensamento de
Kardec é uma
antevisão
terrena dos
caminhos da
Humanidade
Contestando o
Criacionismo,
põe em evidência
a evolução do
Espírito, que
caminha pari
passu com a
evolução física
demonstrada por
Darwin, ao tempo
em que resgata
diante da
consciência
humana um dos
atributos
básicos de um
Ser Perfeito: a
Justiça. Tudo
promana de uma
mesma fonte,
todos partimos
de um mesmo
ponto, dotados
da mesma
potencialidade
evolutiva,
conforme
ensinaram os
Espíritos: “É
assim que tudo
serve, tudo se
encadeia na
Natureza, desde
o átomo
primitivo ao
arcanjo, que
também começou
por ser átomo.”
7
Por conhecer
essa luz divina
imanente em toda
a criação, é que
Jesus lançou o
desafio
evolutivo:
“Assim
resplandeça a
vossa luz diante
dos homens
(...)”.8
Não se pretendeu
aqui fazer uma
análise
exaustiva da
obra de Kardec,
nem da sua
capacidade como
filósofo,
educador,
sociólogo ou
teólogo.
Buscou-se
enfocar apenas o
avanço do seu
pensamento, em
relação aos seus
contemporâneos.
Kardec
transcende sua
época,
enxergando além
dos interesses,
da cultura, do
meio social e
religioso em que
convive.
Se o Prof.
Hippolyte Léon
Denizard Rivail
tivesse
publicado suas
obras sem
revelar os
diálogos com os
Espíritos e o
seu aspecto
religioso, por
certo a França o
teria incluído
entre seus
filósofos,
conforme já o
fizera entre
seus grandes
educadores.
No decorrer
deste milênio,
quando o ranço
religioso e o
academicismo
enfatuado se
fizerem menos
presentes, e
quando não mais
estiverem tão
distanciados das
verdades do
Evangelho puro,
Kardec
certamente será
estudado nas
universidades,
será
“descoberto”
como um gênio do
século XIX,
maravilhando
Espíritos que já
terão
reencarnado para
o
estabelecimento
de diretrizes
educativas dos
tempos novos.
Nessa ocasião,
terão
dificuldade em
situá-lo numa
área do saber
humano, em face
do domínio
revelado por ele
no campo da
sociologia, do
direito, da
educação, da
filosofia e,
principalmente,
da teologia.
A marca
inquestionável
da sua condição
de grande
missionário é o
fato de o seu
pensamento não
estar preso ao
lugar e à época.
Seu pensamento
vigoroso
projeta-se no
futuro, numa
antevisão
terrena dos
caminhos da
Humanidade.
Espiritualmente
falando, não é
antevisão, é
simplesmente a
recordação dos
temas humanos
que mereceram
seu estudo, sua
análise
minuciosa, no
Espaço, antes de
se reencarnar.
Guardadas as
devidas
proporções, é o
mesmo fenômeno
que se deu com
Jesus que,
transcendendo os
conhecimentos,
os interesses,
as aspirações –
a própria
cultura da época
–, fez
abordagens de
assuntos
incomuns e
deixou
ensinamentos e
diretrizes
evolutivas para
os séculos
porvindouros.
Referências:
O Livro dos
Espíritos:
1 - item 1
3 - item 684
4 - item 685 a
5 - item 695
6 - 696
(comentário)
7 - item 540.
Novo Testamento:
2 - Mt, 16:24
8 - Mt, 5:16.