1. Giorgio
Del Véchio, um
dos grandes
nomes da
Filosofia do
Direito,
professor da Universidade
de Bolonha, a
mais tradicional
e antiga da
Europa, inicia
sua obra
clássica A
JUSTIÇA (Ed.
Saraiva, São
Paulo, 1960, p.
1) lembrando as
numerosas e
graves disputas
que se têm
travado em torno
da noção de
direito e
realçando que
“maiores todavia
são as
dúvidas e
divergências que
se movem em
torno do
conceito de justiça:
umas vezes é
tomado como
sinônimo e
equipolente do
primeiro, outras
vezes, pelo
contrário, como
distinto e
superior a ele”.
Destaca a
verdadeira
tautologia que
se estabeleceu a
respeito,
afirmando que
“sob certo
aspecto, faz-se
consistir a
justiça na
conformidade com
uma lei: mas,
por outro lado,
afirma-se que a
lei deve ser
conforme com a
justiça”.
A questão é
extremamente
preocupante, e
atinge
indistintamente
todos os ramos
do Direito. Uma
longa militância
na área
criminal, de um
modo especial no
Tribunal do
Júri,
permitiu-nos
defrontar, vezes
sem conta, com o
terrível
conflito entre o
legal e
o justo, pois
o Júri, no
Brasil, nos
termos de sua
competência
constitucional, julga
os crimes dolosos
contra a vida
(homicídio, induzimento,
instigação ou
auxílio a
suicídio,
infanticídio e
o aborto), e as
suas decisões,
tanto
absolutórias
como
condenatórias, dificilmente
podem ser
tomadas como
modelos de
justiça. O
latrocínio
(matar para
roubar), vulgarmente
chamado de assalto, não
integra esse
rol, por ser
crime contra o
patrimônio. O
julgamento de
quem o comete é
da alçada do
Juiz de
Direito.
2.
As decisões do
Júri podem
apontar na
direção de
autênticas
anomalias
éticas, não
obstante
plenamente
acobertadas,
resguardadas e
legitimadas pelo
Direito. Além
de ser um
tribunal formado
por leigos, aos
quais
estranhamente se
submetem
complexas
indagações de
direito, as suas
origens não o
recomendam. Alguns,
como salienta
Vicente de Paulo
Vicente de
Azevedo (CURSO
DE DIREITO
JUDICIÁRIO PENAL,
Ed. Saraiva, São
Paulo, 1958, V.
II, pp. 176 e
ss.), vão encontrá-las
na Grécia e em
Roma. Na primeira,
na instituição
dos heliastas. Eram
cidadãos, de
nível inferior
em cultura e
educação, que
julgavam ao ar
livre (daí a
denominação de heliastas,
palavra derivada
de helios,
sol). Suas
decisões mais
notáveis foram o
exílio de
Aristides, por
se acharem
cansados de
ouvi-lo chamar o
justo, e a
condenação de
Sócrates a beber
cicuta, por
idênticas e
mesquinhas
razões.
O Brasil é um
dos poucos
países que
insistem
em
manter o
Tribunal do Júri
Em Roma, os
pesquisadores
encontram traços
comuns do Júri
atual com os
judice jurati. O
modelo romano, a
exemplo do
brasileiro,
adotava a
faculdade de
alguns jurados
poderem ser
recusados.
Porém, as razões
das recusas não
o dignificavam,
porquanto ou o
jurado se vendia
por um preço tão
vil que todos os
interessados
podiam pagar e,
por conseguinte,
ninguém se
sentia seguro
quanto ao
veredicto, ou a
venda era por um
preço tão alto,
que só os ricos
podiam
beneficiar-se
com suas
decisões!
Todavia, suas
origens mais
próximas
remontam a 1215,
quando o Quarto
Concílio de
Latrão aboliu as
ordálias ou
julgamentos de
Deus. De acordo
com essa forma
de julgar, o
acusado deveria
provar sua
inocência
mergulhando, sem
dano, a sua mão
em água ou
azeite fervente
ou colocando-a
sobre um ferro
em brasa, quando
não se via
forçado a
submeter-se a um
duelo, em que,
normalmente,
prevalecia a
força ou a
destreza, que
nem sempre
correspondiam à
sua alegada
inocência. Em
face da
proibição
conciliar, os
clérigos
ingleses,
invocando as
tradições e
crenças que
dominavam os
espíritos
daquela época,
criaram o
Tribunal do
Júri. A sua base
repousa sobre a
convicção
reinante de que,
assim como os
doze apóstolos
haviam recebido
a visita do
Espírito Santo,
doze homens de
consciência
pura, reunidos
sob a invocação
divina,
atrairiam
infalivelmente a
verdade para o
meio deles. Da
Inglaterra, ele
passou para a
França depois da
Revolução de
1789, como uma
das formas de
exercício da
democracia. O
Júri francês, no
entanto, adotou
critérios
diferentes, seja
no que se refere
ao número de
jurados, seja
quanto à forma
de julgamento.
Foi nele que se
inspirou a
instituição hoje
vigente no
Brasil. Atualmente,
entretanto, já
não mais existe
naquele país,
tendo sido
substituído pelo
Escabinado.
O Brasil é um
dos poucos
países que ainda
insistem em
manter o
Tribunal do
Júri, erigido,
inclusive, à
condição de
direito e
garantia
fundamental pela
Constituição de
88, repetindo
velha tradição
que vem desde a
de 1946.
3.
A fragilidade
e imperfeição da
justiça humana
decorrem
naturalmente de
sua própria
natureza.
Dependem do grau
de evolução
moral de um povo
e refletem
aquilo que ele
foi, ou é, num
determinado
instante de sua
história. Daí a
razão por que as
chamadas noções
prévias de
direito e de
justiça, embora
inatas ao homem,
estão, muitas
vezes, eivadas
de conceitos,
preconceitos e
conotações
típicas da
cultura popular,
nem sempre
consentâneas com
a moral.
Conforme a
doutrina
espírita,
justiça é
“cada
um respeitar os
direitos dos
demais”
Assim, o
habitante do
Brasil colônia,
da mesma forma
do que ocorria
em Portugal e na
Espanha, não se
insurgia, a não
ser excepcional
e
esporadicamente,
contra os
verdadeiros
descalabros do LIVRO
QUINTO DAS
ORDENAÇÕES DO
REINO DE PORTUGAL (ORDENAÇÕES
FILIPINAS),
que vigorou
entre nós, no
que diz respeito
ao Direito
Penal, até 1830,
quando foi
editado o Código
Criminal do
Império.
O fanatismo e a
ignorância
religiosa, bem
como atraso
cultural,
vigentes
influenciavam e
definiam os
sentimentos de
direito e de
justiça
predominantes na
época, apesar
dos absurdos
que, aos nossos
olhos, eles
continham.
Quando os
autores
espirituais da
Codificação
definiram a
justiça em
função do
respeito devido
aos direitos
alheios, e
informaram sobre
as origens
desses direitos
(Questão 875 e 875-a de O
LIVRO DOS
ESPÍRITOS),
estabeleceram
duas fontes
principais: a
lei humana e a
lei natural. A
primeira
acompanha os
usos e costumes,
e os direitos
dela decorrentes
são mutáveis
para melhor, à
medida que se
verifica o
avanço do
progresso moral.
São deles as
palavras: “Vede
se hoje as
vossas leis,
aliás
imperfeitas,
consagram os
mesmos direitos
que as da Idade
Média.
Entretanto,
esses direitos
antiquados, que
agora se vos
afiguram
monstruosos,
pareciam justos
e naturais
naquela época.
Nem sempre é
acorde com a
justiça o direito
que os homens
prescrevem”.
4.
No entanto,
mesmo à vista de
todos os seus
erros e
deficiências,
nenhum homem
deixa de trazer
consigo, no imo
de sua alma, o
germe da
justiça, cuja
essência é a lei
natural: “No
coração do homem
imprimiu Deus a
regra da
verdadeira
justiça, fazendo
com que cada um
deseje ver
respeitados os
seus direitos” (L.E.,
questão 876).
Compete-lhe,
pois,
desenvolvê-la e
aperfeiçoá-la,
de modo a
ensejar que o
direito por ele
elaborado seja o
mais justo e
honesto
possível, e que
se torne um
efetivo
instrumento da verdadeira
justiça,
conforme
preconiza Gustav
Radbruch (FILOSOFIA
DO DIREITO,
Coleção Stvdvivm,
Arménio Amado,
Editor, Coimbra,
Portugal, 1961,
p. 34), que o
entende como
“uma realidade
que tem o
sentido de se
achar ao serviço
da Justiça”. Todavia, conforme
já visto, a
justiça consiste “em cada
um respeitar os
direitos dos
demais”, razão
por que esse
respeito somente
pode ser devido
quando o direito
em questão
estiver concorde
com a ética.
Segundo Moisés,
Jeová lhe teria
entregue
diretamente
os
Dez Mandamentos
Não se cogita
aqui de qualquer
distinção entre
ética e moral,
como pretendem
alguns. Tal
distinção não
existe, desde
quando a palavra
foi utilizada
pela primeira
vez por
Aristóteles em
sua ÉTICA
A NICÔMACO, e
teve seu sentido
referendado por
Cícero ao dizer: “quod ethos
illi vocant, nos
decet nominare
moralem” (o
que eles chamam
de ético, nós
denominamos
moral). Fora
disso, prevalecerá
a velha máxima
romana: “nom
omne quod licet,
honestum est” (nem
tudo que é
lícito é
honesto).
5. Essa
contradição ou
oposição entre
direito, justiça
e moral
estimulou o
homem na procura
de um fundamento
superior para o
primeiro, a fim
de permitir-lhe
sua adequação
com o justo e
uma melhor
sintonia com o
verdadeiro
sentimento de
justiça, que
dormita nos
refolhos de sua
consciência.
Nessa busca, ele
seguiu o caminho
do retorno a
Deus como a
principal fonte
do direito,
embora lhe fosse
muito difícil
conviver com o
Deus
antropomorfo, feito
à imagem e
semelhança do
homem,
portador, em
grau
superlativo, de
seus erros e
defeitos
milenares. As
leis, quase
sempre injustas
e arbitrárias,
refletiam essa
situação,
porquanto,
seguindo uma
tradição que
remontava aos
primitivos
agrupamentos
sociais,
imputava-se à
divindade a
condição de
principal
legislador. Assim,
a mais antiga
legislação
conhecida, o
Código de
Hamurabi, que
data do XXIII
século a.C.,
teria sido
transmitida
diretamente ao
rei babilônico
por Marduque,
seu deus-sol;
Zaratrusta
afirma que
recebeu suas
leis, no cimo de
uma montanha,
diretamente de
Ahura Mazda, e
Moisés legou aos
judeus os Dez
Mandamentos como
resultado de uma
entrega direta
que Jeová lhe
fez, no alto do
Sinai. O caráter
divino do
direito não
impedia,
contudo, que ele
refletisse
invariavelmente
ou a vontade
exclusiva do
legislador ou o
interesse de
minorias
privilegiadas.
Tal fato acabou
por implicar a
falência do
legislador
divino. Deus
estava,
iniludivelmente,
a serviço dos
fortes e
poderosos, e os
mais fracos e
socialmente
menos
favorecidos
deveriam,
curvando-se
diante de sua
caprichosa
vontade,
permanecer
pacientemente
nas suas
sofridas
situações. Somente
lhes competia
continuar
servindo aos
objetivos
exclusivos de
seus senhores,
dentre os quais
pontificavam, em
todas as épocas
e em todas as
religiões, os
membros da
classe
sacerdotal.
Na cultura
judaico-cristã,
o Decálogo
continua
sendo a
“Constituição
Divina”
Os deuses, de
toda espécie e
categoria, assim
como seus
pseudorrepresentantes
na Terra, nada
mais fizeram do
que intimidar,
explorar e
enganar o
homem. O
Cristianismo,
paradoxal e
contraditoriamente,
foi a religião
que mais se
esmerou nesse
mister.
Desconheceu, com
estranha e
sistemática
tendência, o Pai
amoroso, justo e
bom de que Jesus
tanto falou, e
cultivou o ser
ciumento e
vingativo, que
pune “a
iniquidade dos
pais nos filhos,
na terceira e na
quarta geração
daqueles que me
aborrecem”, colocando-o
sempre a serviço
de interesses
inconfessáveis e
desonestos
daqueles que se
arvoraram em
seus dirigentes
na Terra...
6.
Essa situação
criou um
obstáculo, cuja
transposição ou
remoção somente
começou a ser
vislumbrada a
partir do
surgimento de
uma nova
mentalidade,
formada e
sedimentada em
torno das noções
de liberdade,
solidariedade e
fraternidade que
o Iluminismo
desenvolveu, e
que propiciaram,
no momento
oportuno, a
eclosão das vozes
do além,
conclamando o
homem para o seu
verdadeiro
destino e
retomando a
ideia do
Deus-Pai-Criador
pregada por
Jesus.
Concomitantemente,
no âmbito da
Filosofia, a
Teoria do
Direito Natural,
que havia
despontado desde
antes da era
cristã em
Atenas,
sustentava a
existência de
princípios
absolutos,
metapositivos,
correspondentes
às exigências
fundamentais da
natureza humana,
deduzidos ou
estabelecidos
pela razão,
anteriores e
superiores ao
governante e ao
direito
positivo, cujo
respeito pelo
legislador
constitui
pressuposto
fundamental de
um Estado
justo. A
teoria recebeu
uma acolhida
quase unânime
dos pensadores,
da antiguidade
aos nossos dias.
Foi consagrada
por Cícero na
sua oração Pro
Milone, em
que a reputou um
direito natural
derivado da
necessidade – non
scripta sed nata
lex –, admitida
por São Tomás de
Aquino, que,
todavia, a
desfigurou ao
submetê-la à
interpretação
exclusiva da
Igreja, e hoje
encontra o apoio
de notáveis
nomes da
filosofia do
Direito, como é
o caso do já
citado Giorgio
Del Véchio.
7. Para
nós, herdeiros
da cultura
judaico-cristã,
o Decálogo
constitui a
“Constituição
Divina”,
porquanto nele
se contém,
sinteticamente,
todo o
ordenamento
jurídico ideal.
Jesus, o seu
grande
hermeneuta,
reduziu-o a dois
princípios
fundamentais: o
amor a Deus e o
amor ao próximo.
A fonte
primordial das
injustiças de
toda ordem
que
ainda grassam na
Terra
Entretanto,
atento ao fato
de que o homem
ainda não
estava, como
ainda não está,
preparado para
conduzir-se na
Terra apenas
pela lei do
amor, explicou,
comentou e
elucidou o
sentido dos dois
mencionados
princípios no
incomparável
Sermão do
Monte, estabelecendo
normas de
conduta, de
claro e
imperativo
conteúdo,
capazes de
ensinar à
humanidade como
aplicar a
referida lei.
Mais tarde,
Allan Kardec,
assessorado e
instruído pelos
Espíritos
Superiores,
expôs, em
linguagem
acessível ao
entendimento e
assimilação de
todos, os
fundamentos
filosóficos,
sociológicos e
jurídicos que,
no decorrer dos
séculos,
nortearam o
pensamento dos
que procuraram
conceituar o
Direito Natural.
E, a exemplo do
que outros já
haviam feito,
ele os
identificou com
a própria Lei
Divina. Só que,
desta feita, os
argumentos e
raciocínios
apresentados se
caracterizaram
pela lógica,
pela
racionalidade e
pela
simplicidade,
desprezando-se o
apelo às
elucubrações
filosóficas e
jurídicas, de
compreensão
limitada a um
pequeno grupo de iniciados.
A Parte Terceira
de O
LIVRO DOS
ESPÍRITOS encerra
em si tudo
aquilo de que o
homem necessita
para,
progressivamente,
diminuir a
imensa distância
que ainda existe
entre Direito e
Justiça, Direito
e Moral. A
tarefa que
originariamente
competia ao
Cristianismo
executar
transferiu-se, a
partir de 1857,
para o campo
mais restrito de
seu segmento
quantitativamente
mais modesto, ou
seja, o
Espiritismo. As
dissensões que
marcaram a
história cristã,
aliadas aos
excessos
cometidos por
Roma, a
intolerância e o
radicalismo que
ela cultivou e
adotou,
projetaram-se,
infelizmente,
para o seio das
Igrejas
Reformadas,
impedindo que o
homem aprendesse
a amar a Deus,
ao invés de
temê-lo, amar ao
próximo, ao
invés de tê-lo
como adversário,
competidor ou
inimigo. Essa
situação
fomentou ainda
mais o egoísmo e
o egoísmo, assim
exacerbado,
ensejou a
elaboração de
leis desumanas,
cruéis,
ambiciosas,
eivadas de
interesses de
classes, imorais
ou amorais,
enfim, numa
palavra,
injustas.
Pretender que,
de um dia para o
outro, o
Espiritismo
acabe com tal
estado de coisas
configura
incontestável
utopia. Contudo,
seus adeptos
podem e devem
contribuir, na
medida de suas
possibilidades e
no âmbito de
suas atividades,
para que uma
nova consciência
seja formada, a
fim de permitir
que a humanidade
de amanhã não
venha a conviver
com as
injustiças de
toda ordem que
ainda grassam na
Terra, cuja
fonte primordial
ainda é, do
ponto de vista
social, esse
malfadado e
eterno conflito
entre o Direito,
a Justiça e a
Moral.